Abordar trabalho como tema é algo deveras complexo, afinal nem mesmo o termo trabalho é compreendido da mesma maneira por todos, já que numa sociedade de tamanha desigualdade, o recorte de classes faz até mesmo com que os termos soem de maneiras diferentes a cada indivíduo. Então, escolho começar a falar sobre o tema traçando o histórico etimológico da palavra “trabalho”, como Raymond Williams faz em seu livro “Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade”.
O termo mais antigo que temos para designar o trabalho está no latim, um desdobramento da palavra “tripalium” ou “tripalus”, uma ferramenta de três paus que inicialmente era utilizada para que cavalos e bois fossem ferrados, mas foi ‘adaptada’ para tornar-se um instrumento de tortura contra escravos e presos, que muitas vezes estavam nessas condições por não conseguirem pagar seus impostos, o que mostra que desde muito cedo a visão de trabalho estava intimamente ligada a algo desonroso, destinada a homens inferiores.
O cristianismo, corrente religiosa que naquele momento história era muito ligada ao estado, reproduziu essa visão em suas pirâmides sociais, onde o clero e a nobreza fazem parte do topo e os trabalhadores da base, realizando tarefas consideradas indignas, pois enquanto a classe dominante era vista como descendente direta de uma ‘linhagem’ divina, o restante da sociedade vinha do pecado de Caim.
Apenas no século XIV a visão do trabalho começa a ir na direção da acepção que temos hoje, que é a aplicação das habilidades humanas para realizar um serviço, sendo necessárias a criação de novas formas de construção social, que vemos em ditados populares como “O trabalho enobrece o homem” ou “Deus ajuda quem cedo madruga”, isso acontece porque, como Karl Marx diz em ‘A Ideologia Alemã’: “as ideias dominantes são as ideias da classe dominante”, portanto, se hoje existe essa visão é porque ela tornou-se necessária para as elites, que desde que a sociedade começou a constituir-se como tal, não temo trabalho em sua rotina.
Thorstein Veblen em sua obra ‘A classe do lazer” aborda o estilo de vida aristocrata burguês, que perdura até os dias de hoje, mas que muitas vezes é disfarçado para que sejam vistos como trabalhadores e o discurso da meritocracia possa ser empregado, exemplos são os investidores de Wall Street com seus ternos de cortes finos, ou o ex-prefeito e atual governador de São Paulo, João Dória, que deu a si mesmo o apelido de João Trabalhador ao ir às ruas e fingir ser alguém que trabalhava na limpeza ou obras públicas.
Apesar dessas distorções, é fato que toda a riqueza produzida é fruto do trabalho realizado pela classe trabalhadora, que mesmo com a produção saindo de suas mãos, é privada do acesso aos bens de consumo. Karl Marx faz a seguinte citação em sua obra ‘Manuscritos Econômico-Filosóficos’:
“Quanto menos se comer, beber, comprar livros, for ao teatro ou a bailes, ou ao botequim, e quanto menos se pensar, amar, doutrinar, cantar, pintar, esgrimir, etc., tanto mais se poderá economizar e maior se tornará o tesouro imune à ferrugem e às traças – o capital. Quanto menos se for, quanto menos se exprimir nossa vida, tanto mais se terá, tanto maior será nossa vida alienada e maior será a economia de nosso ser alienado.”
No sistema socioeconômico ao qual nos encontramos, para que o sujeito possa constituir-se em ser humano, primeiro ele precisa constituir-se como trabalhador, assim conseguindo parcialmente o acesso material aos elementos citados por Marx e outros mais. Sabendo disso, proponho-lhes uma reflexão: o que acontece então com a classe que é privada até mesmo do acesso ao trabalho, enfrentando anos de desemprego, vivendo em condições de precariedade inimagináveis e sendo completamente isoladas do convívio social mais básico? Quais são suas possibilidades reais de ‘ascensão social’ e quais são os efeitos psicológicos de estar posto a tais condições? O que lhes resta é uma completa desumanização e embrutecimento, ou seja, a animalização do ser humano.
Atualmente existem no Brasil, segundo dados oficiais 12,7 milhões de pessoas desempregadas, número esse que não chega nem perto da realidade, tendo em vista que mais de 5,4 milhões de pessoas estão em condição de desalento, ou seja, desistiram de buscar emprego. Dentre os teoricamente empregados, milhões encontram-se na informalidade, muitos deles em condições degradantes e com uma renda baixa e decrescente.
Desde 2017, quando foi aprovada uma reforma trabalhista que através da retirada de direitos e segurança jurídica do trabalhador prometia a criação de milhões de postos de emprego, o número de desempregado teve pouca oscilação e o trabalho informal continuou crescendo, gerando uma subocupação de trabalhadores que estão exercendo funções abaixo da capacitação que possuem ou trabalhando menos horas do que gostariam
Mas afinal, no Brasil não faltam médicos, professores, eletricistas, engenheiros, mecânicos, etc? A resposta é que sim. O que não falta no Brasil são coisas a serem feitas, temos uma extensa mão de obra ociosa que poderia estar trabalhando para melhorar nossa vida enquanto coletivo, produzindo e gerando riquezas a população, mas essas pessoas vem tendo sua força de trabalho desperdiçadas.
Em 2019, o CEO do Itaú, Candido Bracher, disse em entrevista que não via o desemprego como algo problemático, pois para seu negócio, menos gente empregada significa um crescimento com uma menor possibilidade de inflação. Mesmo com faturamentos recorde, o Itaú antes mesmo da chegada da pandemia vinha executando programas de desligamento voluntário, e durante ela, outras empresas se aproveitaram do momento para demitir trabalhadores ou reduzir salários, mesmo as que não estão sendo afetadas pela crise, aproveitando a oportunidade em que os sindicatos estariam enfraquecidos e não teriam forças para contornar tais medidas e haveria a desculpa da pandemia para tais ações, que já deixo o spoiler: não serão revertidas após seu fim.
O FUTURO DO TRABALHO
Como a historiografia nos ensina, para que quaisquer previsões sobre o futuro sejam feitas, é preciso se analisar o passado e o presente para compreender como se dá o desenvolvimento de tais questões.
Afinal, se o lucro é recorde, porque o desemprego, a informalidade e as demissões também são? A Revista Valor Econômico divulgou que o patrimônio dos quarenta e dois bilionários brasileiros aumentou US$34 bilhões durante a pandemia, enquanto boa parte da população perdeu seu emprego e vive com o Auxílio Emergencial, que acabará em breve.
A história do capitalismo é essa: a tecnologia desenvolvida e implementada e a mão de obra mais especializada faz com que seja necessário menos trabalho para produzir mais, porém, você em momento algum passa a trabalhar menos horas ou sequer receber mais. Aposentar-se mais cedo? Nem pensar.
O gráfico a seguir, divulgado pelo Economic Policy Institute mostra a evolução da produtividade e dos salários entre os anos 1948 e 2014:
O gráfico mostra uma distorção entre salário e produtividade que teve seu início nos anos 70, as causas são diversas e não aprofundarei-me nisso durante este texto, mas essas distorções explicam muito bem para que o desenvolvimento tecnológico e a capacitação de profissionais serviu: aumento das taxas de lucro.

Hoje, o mundo possui tecnologia e recursos suficientes para que nenhuma pessoa esteja vivendo nas ruas, passando fome, sem acesso à escola, etc. no entanto, o livre mercado só possibilita esse acesso a quem pode pagar, mas o ganho dessas pessoas está o em despencando há 50 anos. Seguindo no modelo em que vivemos, a perspectiva não é de melhora, mas sim de queda livre, contando também com a destruição dos modelos previdenciários que obrigarão o trabalhador trabalhar mais, por mais tempo e ganhando menos.
Cada vez são necessários menos trabalhadores para a realização de tarefas básicas, com essa mecanização os postos de trabalho vem tornando-se cada vez mais escassos e menos remunerados, já que a necessidade faz com que pessoas aceitem trabalhar em condições cada vez piores e com salários cada vez menores, com o sistema capitalista caminhando rumo a uma espécie de feudalismo apocalíptico.
Para construirmos uma sociedade equilibrada que atenda as demandas da totalidade de sua população, podemos começar olhando as ditas ‘nações desenvolvidas’, que como Eduardo Galeano diz em sua obra ‘As veias abertas da América Latina’ assim podem ser chamadas pois nos colonizaram, exploraram, fizeram com que pagássemos as contas por suas guerras e comprássemos as manufaturas desenvolvidas a partir de nossas próprias riquezas naturais, que aqui não puderam ser aproveitadas por pressões do capital.
As horas de trabalho nos países mais desenvolvidos do mundo vem caindo constantemente, muitos já adotando rotinas de seis horas diárias, que visam aumentar a qualidade de vida, estimular o consumo e a especialização de sua população, que tem acesso a uma estrutura social evoluída já que os postos mais degradantes são ocupados por populações imigrantes ou transferidos aos países ditos de ‘terceiro mundo’.
A luta da classe trabalhadora, principalmente nos países da periferia do capitalismo é para que isso não seja o privilégio de uma minoria que não foi substituída por máquinas e faz parte de grupos étnicos específicos, mas uma forma de oferecer dignidade e trabalho à totalidade da população. O futuro do trabalho precisa constituir-se de funções que dignifiquem e ofereçam um trabalho que ‘sirva para algo’, não seja alienado e nos leve para lugares melhores, com tempo para investirmos em nossa própria vida.
Contar a história do mundo é contar a história do trabalho, pensar no futuro é construir novas relações de produção e um novo sistema que possa oferecer uma condição digna a população humana. Todos deveriam ter acesso ao trabalho e a partir do momento em que todos trabalharem, ninguém precisará trabalhar o tanto que trabalha, criando-se formas de vida muito diferentes do que vemos hoje.
Parafraseando Karl Marx, até o momento tudo que vimos foi a Pré-história da humanidade, pois tudo que vimos foi a história de uma sociedade de classes onde alguns poucos exploram outros muitos.
Esse texto visa abordar a questão do trabalho tendo como fim questionar o funcionamento e as condições sociais existentes, as fontes bibliográficas e dos dados são apresentadas no decorrer do texto, que é fortemente baseado na produção da professora e blogueira Rita von Hunty, em seus vídeos “O FUTURO DO TRABALHO”, “TRABALHO, DE NOVO…”, palestras e entrevistas, com a devida autorização dada pela mesma. A ela cabe todos os méritos desta publicação, a mim, a responsabilidade por suas lacunas não preenchidas. O texto trata apenas de uma introdução a uma discussão extremamente ampla, na qual podem ser dados os mais diversos direcionamentos, cabe ao leitor questionar-se e buscar novas fontes que poderão sanar suas dúvidas, e, porque não lhe dar a ele a oportunidade de refletir e propor soluções? Obrigado.