Ontem, por um descuido, ele quase abraçou alguém. Avistou-a de longe e, por sorte, não tinha esquecido as lentes que o impedem de enxergar o mundo distorcido. Não que, muitas vezes, ele não o veja completamente cinza e sem sentido algum. É só miopia, mas parece golpe da graça para não entrar em contato com o realismo que impressiona e pode cegar.
Há dias que doem. E esse dia não era ontem.
Ontem ele acordou desejando que a vida se revelasse em tons harmônicos e vibrantes; acordou com a impressão de transcender o paradoxo das vivências e com uma leve sensação de que aqui é mesmo o lugar certo. Sem ter convicção do que realmente seja certo. Não é confuso, dizia. Há pontos a se orientar como, por exemplo, o que nos rege em sociedade e que existe para não escancarar a barbárie. Todos serem iguais perante a lei é caminho. Não é todo dia que isto ocorre, mas o fato de não ser todos os dias mantém o mistério do desejo visceral. Não sabia por que, ao vê-la, esqueceu o que estava indo fazer naquela rua movimentada.
Observo-a sorrir, ainda que usando uma máscara. Sentiu a alegria dos seus olhos que olhavam como se esperasse outra reação senão a paralisia e, por ser tão previsível, realmente paralisou. Quase a abraçou num apreço misturado com saudade e necessidade de contato. Ambos tão dependentes das relações com o outro. Pensou na merda que era viver e, ontem, logo ontem que era dia de otimismo clichê, dentro da ambiguidade, sentiu raiva. Tantos desejos da experiência subjetiva sendo calados porque o mundo não gira em torno de agradar ou satisfazer as loucuras da psique.
Começou a pensar que os efeitos do ano de dois mil e vinte não são sentidos tão veementemente neste momento. Ainda vai levar algum tempo para perceber o estrago. Sabe quando você está numa situação de risco e não consegue pensar? É assim, congelamos expressando uma certa opticidade e, no entanto, é só estado de choque. O contato com o desconhecido, em algumas pessoas, causa paralisia. Vai ver que é falta de método, script de sobrevivência e o tal do jeito certo.
O encontro deles durou pouco, menos do que gostariam. Mas o suficiente para manter a impressão do sentimento que acontece quando estamos com alguém de quem gostamos. O suficiente, também, para ter mexido nos planos do dia que deveria ser omisso de questionamentos e de pura contemplação.
Trocaram frases que tinham em comum a expressão “quando tudo isso acabar” e desejaram mesmo que acabasse logo para que não perdessem o timing da afinidade. A vontade de viver era feroz, mas estava presa numa barragem que segura, ainda que momentaneamente, toda aquela energia comprimida. Se romper, estraga. Mas, presa, perdia sua potência natural.
A vontade de viver era urgente pois, no fundo, ele sabia: nada era feito para durar.