Este artigo foi produzido com o auxílio de colaboradores anônimos.
22 de outubro de 2010 — Nessa data, começava o maior vazamento de documentos militares secretos da história. Mais de trezentos mil arquivos do Exército norte-americano durante a Guerra do Iraque foram expostos ao público.
Os arquivos mostraram como centenas de civis foram assassinados, e suas mortes, jamais reportadas. Os relatórios detalham 109.032 mortes no Iraque – compostas por 66.081 ‘civis’, 23.984 ‘inimigos’ (rotulados, nos relatórios, como insurgentes), 15.196 ‘anfitriões’ (membros do governo e exército iraquianos), e 3.771 ‘amigas’ (forças da coalizão parceiras dos Estados Unidos).
A maioria das mortes (66.000, mais de 60%) são de civis. Ou seja, 31 civis morreram todos os dias durante o período dos vazamentos, enquanto a guerra ainda estava ativa.
Vale lembrar que George Bush, ex-presidente dos Estados Unidos, iniciou a Guerra no Iraque por acreditar que o país possuía armas de destruição em massa e que violara seriamente as diretrizes dos Direitos Humanos. Nenhuma das afirmações foi provada, até hoje, pelo país.
Antes da divulgação do Iraq War Logs, um prévio escândalo envolvendo soldados norte-americanos no Iraque já havia abalado o mundo. Esse escândalo ficou conhecido como a tortura em Abu Ghraib. Para contextualização – Abu Ghraib era uma prisão em território iraquiano, ela foi fechada seis anos atrás. Enquanto estava ativa, foi cedida pelo governo iraquiano para funcionar como um dos centros de detenção do Exército norte-americano. Em junho de 2003, a Anistia Internacional publicou uma série de reportagens denunciando violações de Direitos Humanos e crimes de guerra por parte das forças norte-americanas em centros de detenção. Um deles, Abu Ghraib.
No ano seguinte, a CBS News fez uma reportagem extensa mostrando fotos – famosas até hoje –– de prisioneiros sendo torturados, forçados a exporem seus corpos, a se humilharem publicamente, sendo estuprados e passando por inúmeros horrores inimagináveis. Em todas as imagens, soldados do Exército apareciam sorrindo, fazendo caretas e se divertindo. Diversos jornais fizeram entrevistas anônimas com prisioneiros para a exposição de relatos mais pessoais, como estes, no Washington Post.
Retornando ao WikiLeaks – Uma das descobertas mais chocantes são os relatórios de dezenas de prisioneiros relatando abuso, em sua maioria, acompanhados de documentação médica comprovando suas afirmações. Prisioneiros e detentos foram vendados, amarrados pelas mãos e tornozelos e submetidos a chutes, socos e até choques elétricos. Relatórios mostram que seis prisioneiros morreram após acontecimentos como esses.
Assassinatos de civis – De acordo com os documentos, alguns soldados norte-americanos viam civis iraquianos como inimigos, mesmo que esses não possuíssem nenhuma ligação com forças iraquianas. Um desses exemplos mostra-se graficamente com o vídeo apelidado de collateral murder – assassinato colateral, tradução livre. No vídeo, um helicóptero dos Estados Unidos atira em um grupo de, aproximadamente, treze civis. Entre eles, dois jornalistas da Reuters. De acordo com os oficiais responsáveis, seus equipamentos de filmagem eram semelhantes a fuzis. Dezoito civis morreram.
Um grande número de documentos também mostrava que tropas norte-americanas assassinaram quase setecentos civis que chegaram muito perto de suas bases militares. Entre as vítimas, mulheres grávidas e pessoas com dificuldades psicológicas.
Forças “pacificadoras” ocidentais praticavam sérias violações de Direitos Humanos – Documentos analisados pelo The Guardian mostravam que as forças norte-americanas haviam falhado em reportar centenas de assassinatos, estupros e outros diversos crimes graves. Um desses exemplos é a contagem de mortes em duas grandes batalhas na cidade de Falluja, no Iraque. Autoridades norte-americanas reportaram, oficialmente, que nenhum civil havia morrido. Entretanto, órgãos responsáveis pela documentação de mortes iraquianas identificaram mais de mil e duzentos civis mortos durante os dois conflitos.
Um grupo baseado em Londres criou o site Iraq Body Count no início da guerra – estão ativos até hoje – e, antes dos vazamentos, declararam que a contagem de mortos divulgada pelas autoridades norte-americanas não batia com a realidade, nem com depoimentos de médicos legistas presentes na zona de guerra.
Entre os documentos, existem três relatórios mostrando que forças de coalizão britânicas abusaram fisicamente e psicologicamente de prisioneiros iraquianos em 2008. O primeiro é datado em junho do mesmo ano, relatando a detenção de um iraquiano de trinta e poucos anos, considerado um “possível insurgente”. Ele foi preso no sul do Iraque, onde havia bases de tropas britânicas. O homem afirma que recebeu socos, chutes e que foi agredido com uma arma em seu peito. Após o ocorrido, autoridades médicas britânicas examinaram-no e determinaram que ele possuía uma fratura na costela, então, transferiram-no para o exército norte-americano – onde relatou que havia sido abusado por “desconhecidos” entre as tropas britânicas.
O segundo é datado em setembro, com alegações de tortura cometidas por tropas britânicas. “Vítima afirma que eles o arrastaram por sua casa até uma tigela de água de plástico, vendaram-no, mergulharam sua cabeça na água, colocaram uma pistola em sua cabeça e o chutaram no meio por aproximadamente trinta, sessenta minutos. Afirma que não contou a equipes médicas britânicas porque estava com medo. ”
Uma equipe médica norte-americana examinou a vítima e alegou que ele mudava a história algumas vezes. “Machucados nas canelas e cotovelo, bem como um corte no lábio que parecem não corroborados com as alegações”. A conclusão da equipe era de que o relato era falso.
O último relatório ocorreu apenas três dias depois. Um detento afirmou que foi “agredido de quatro a cinco vezes em suas costelas e, depois, enforcado por trinta minutos”. Mesmo assim, uma equipe médica norte-americana afirmou, novamente, que não havia sinais de abuso físico e a conclusão final alega que o relato era falso.
“Entrega” de prisioneiros – O governo do ex-presidente Barack Obama entregou milhares de detidos às autoridades iraquianas, apesar de saber que havia centenas de relatos de supostas torturas em instalações do governo iraquiano.
A administração havia sido avisada pelas Nações Unidas e diversas organizações protetoras dos direitos humanos que métodos de tortura eram utilizados frequentemente nas prisões iraquianas. Além disso, os vazamentos mostram que vários oficiais do exército norte-americano também avisaram a seus superiores que isso estava ocorrendo – houve mais de 1.300 queixas.
Essa “entrega” de prisioneiros também seria uma clara violação de leis internacionais, como a Convenção contra Tortura das Nações Unidas, estabelecida na década de oitenta. Manfred Nowak – na época, relator especial da ONU sobre tortura – afirmou que “se os arquivos divulgados através do WikiLeaks apontavam para violações claras da Convenção, a administração de Barack Obama era obrigada a iniciar uma investigação.”
Era claro, para a administração, que presos transferidos poderiam ser submetidos a tortura. Eles sabiam, e não digo isso somente pelos incansáveis avisos de autoridades internacionais, mas porque, analisando os vazamentos, encontrei diversos relatórios – feitos pelo Exército dos Estados Unidos – descrevendo explicitamente como presos sofriam no regime.
Esses relatórios descreviam como prisioneiros estavam sendo açoitados com cabos, correntes, arame e pistolas e sendo queimados com ácido sulfúrico e bitucas de cigarro. Alguns relatórios descrevem pessoas recebendo choques elétricos em seus órgãos genitais, tendo unhas arrancadas e dedos cortados. Em outros casos, os documentos relatam homens sendo sodomizados com garrafas, mangueiras e estuprados.
Um dos piores casos descritos nos relatórios é de um homem que passou dois meses em uma prisão em Diyala – administrada pelo Ministério de Justiça do Iraque.
O relatório descreve: "25 de março de 2006; Suas mãos estavam amarradas / algemadas e ele estava suspenso no teto; o uso de objetos rombos (tubos) para espancá-lo nas costas e nas pernas; e o uso de furadeiras elétricas para fazer buracos nas pernas."
Em 2008, uma missão de assistência das Nações Unidas avisou, novamente, as circunstâncias a que presos seriam submetidos caso transferidos para prisões iraquianas. Entretanto, o acordo bilateral entre Iraque-Estados Unidos foi firmado e posto em prática um ano depois, permitindo, assim, que essas transferências fossem mais rápidas. O exército norte-americano continuou relatando casos de tortura em prisões iraquianas, mesmo após o acordo – mais especificamente, cento e doze casos.
Após os vazamentos, Julian Assange – co-fundador do WikiLeaks – afirmou que os documentos davam a oportunidade ao público de saber a verdade sobre a guerra. Durante uma conferência em Londres, afirmou: “Este vazamento é sobre a verdade. O ataque à verdade começa muito antes do início da guerra e continua muito depois do fim da guerra. Esperamos corrigir parte desse ataque [à verdade].”
As reações ao redor do mundo sobre os arquivos foram, no mínimo, polêmicas. A Secretária de Estado da administração, Hillary Clinton, afirmou que “condenava nos termos mais claros” os vazamentos, além disso, disse que “todos colocam americanos em risco, enquanto o Pentágono avisou que a publicação deste tipo de documento poderia colocar em risco oficiais americanos e civis iraquianos”. Na época desse comunicado, Hillary trabalhava na administração do democrata Barack Obama – empossado em 2009. Obama persistiu com o conflito no Iraque, encerrando-o somente dois anos depois dos vazamentos do WikiLeaks, em 2011.
Diversos oficiais do governo iraquiano também se pronunciaram após os vazamentos. Surpreendentemente, a maioria estava do lado dos Estados Unidos. O Ministro de Assuntos Estrangeiros da época, Ramim Mehmanparast, afirmou, em entrevista, que não sabia quais eram as intenções do WikiLeaks ao publicar esses materiais, além de que “séria ambiguidade” e “dois lados”.
A Guerra do Iraque acabou há nove anos, mas os crimes cometidos não perderam sua relevância. Sem os vazamentos do WikiLeaks, o mundo provavelmente não saberia de todos os crimes de guerra praticados pelo exército norte-americano, assim como por forças estrangeiras. Essas informações foram e são cruciais para analisar e criticar as atuações dos Estados Unidos no imperialismo porque mostram, sem censura, a imagem real do exército norte-americano, não a fabricada em prol de seu nacionalismo.
Não existe, sob nenhuma hipótese ou circunstância, uma justificativa para todos os crimes cometidos. Nenhuma nação possui o direito – seja moral ou político, o que seja – de invadir um território estrangeiro, devastar seu país, assassinar, estuprar e torturar seu povo. Não existe uma “ameaça ao terrorismo” forte o suficiente que justifique nenhum dos atos descritos neste artigo.
Até o presente, o exército norte-americano nunca foi responsabilizado por seus crimes, já que, aparentemente, a geopolítica consegue perdoar crimes de guerra caso você seja a “maior democracia do mundo”. E, para piorar toda a situação, o vice-presidente que, na época, estava empossado, ativo e consciente de todos os acontecimentos foi eleito, este ano, como presidente – e o presidente da época ganhou um Nobel da paz. Quero deixar claro que reclamar disso não é um sinal de apelo favorável a Donald Trump, pois nunca tive, nunca terei.
A minha indignação vem do fato de que, em nove anos, tudo isso foi esquecido. Todos os crimes e toda a dor infligida foram esquecidos, perdoados. Enquanto o atual presidente eleito, Biden, clama diversidade, respeito e repúdio pela extrema-direita norte-americana, suas mãos ainda estão sujas de sangue da guerra do Iraque. Em uma semana da publicação deste artigo, Julian Assange poderá ser extraditado para os Estados Unidos, onde possui dezoito acusações de violação a Lei de Espionagem. Caso seja extraditado, julgado e condenado, poderá ser sentenciado a cento e setenta e cinco anos de prisão. Enquanto Assange poderá passar o resto da vida na prisão por desenvolver uma plataforma que expõe violações de Direitos Humanos e crimes de guerra, os criminosos tornam-se presidentes.
Este artigo faz parte de um especial em homenagem a Julian Assange, co-fundador do WikiLeaks, onde encontramos a maioria – se não todas – as informações presentes aqui. Para se informar sobre o caso, acesse a aba ao lado e clique na categoria Especial – WikiLeaks.