Conspiracionismo à direita: politicamente correto e marxismo cultural

Todo espantalho político tem uma origem, e é através desse ponto de partida que podemos observar a expansão e sedimentação do pensar da extrema direita e, ao mesmo tempo, notar o vazio teórico destes pensamentos.

Muitas pessoas apenas se depararam com o termo “marxismo cultural” quando a direita conservadora começou a ganhar maior visibilidade no Brasil. No entanto, essa teoria da conspiração surgiu com um nome mais familiar e que, para grande parte da sociedade, tornou-se um fenômeno válido, embora sua existência seja contestável: o politicamente correto. As ideias acerca dessa narrativa conspiratória vêm sendo gestadas há algumas décadas por uma direita estadunidense preocupada com uma falsa dominância do pensamento progressista nas universidades e na mídia. Com uma boa dose de imperialismo, não demorou até que essas teorias alarmistas chegassem ao Brasil por meio de nossos formadores de opinião conservadores.

Em agosto de 2022, redigi uma crítica ao livro Tempestade ideológica (2021), de Michele Prado, em que questionei os métodos de seleção bibliográfica e condução da pesquisa que resultaram na obra. Chamou-me a atenção o fato de a autora subscrever à ideia de que grupos de esquerda, cujas pautas envolvem a exclusão social em função de suas identidades, são os responsáveis por cercear os debates, reforçando a suposta imposição do “politicamente correto”.

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Ademais, apontar que o Partido dos Trabalhadores (PT) foi o responsável inicial por uma “polarização” — por mim colocada entre aspas por haver apenas um lado extremista, não se tratando de uma simetria — e pelo próprio antipetismo é um posicionamento simplista tomado pela autora logo na introdução do livro. Outra simplificação está na noção de que a articulação das direitas conservadoras e neoliberais teria sido impulsionada a partir de 2013, com as manifestações pelo passe livre.

Implícita nesses posicionamentos está uma relação de causalidade em que a esquerda — colocada como algo mais uniformizado e, portanto, distante das esquerdas como se apresentam — seria um elemento importante para a ascensão da extrema direita no Brasil. Em que pese os problemas e a necessidade de crítica ao progressismo e a algumas estratégias de ativismo, um ponto central deixou de ser abordado por Prado: como as direitas conservadoras se apropriaram de questões dos movimentos identitários e se utilizaram disso para encampar uma batalha semântica nas trincheiras da guerra cultural.

Olavo de Carvalho não foi o precursor dessa estratégia e, a bem da verdade, grande parte daquilo que pregava vinha de teorias da conspiração já prontas. Seu papel foi o de torná-las populares com a ajuda e aval da grande mídia nacional.

Antes de tratar do cenário nacional, no entanto, é preciso fazer um resgate de acontecimentos nos Estados Unidos nas últimas décadas do século XX.

Escola de Frankfurt como bode expiatório conspiracionista

A compreensão de como a memória coletiva das direitas – e de parte do público geral – está permeada por uma narrativa enviesada, pautada em uma teoria da conspiração que ganhou o nome de “politicamente correto”, passa por disputas políticas estadunidenses e uma articulação reacionária. Nesse sentido, alguns nomes que receberam pouca atenção por noticiários e análises no Brasil precisam ser destacados.

O primeiro nome é o de Lyndon LaRouche, um conspiracionista norte-americano que elegeu a Escola de Frankfurt como bode expiatório ainda na década de 1970. A seita liderada por LaRouche parece ter alimentado a paranoia que, posteriormente, será disseminada por um segundo nome que merece destaque: William S. Lind, responsável por cunhar o termo “marxismo cultural”.

Andrew Woods (2019), pesquisador e doutorando no Centre for the Study of Theory and Criticism da Universidade de Ontário Ocidental, publicou um histórico esclarecedor na página Commune, acerca do papel de LaRouche na teoria conspiratória que, atualmente, conhecemos por “marxismo cultural”.

Em 1974, a publicação Executive Intelligence Review (EIR), da qual LaRouche foi fundador e editor-chefe, trouxe um “relatório especial” intitulado “Angela Davis: The Offer the CPUSA Could Not Refuse”. O texto alega que Angela Davis seria uma infiltrada da CIA no Partido Comunista dos Estados Unidos, devidamente treinada por Herbert Marcuse e Theodor Adorno.

Como se dá nas narrativas conspiratórias e nas fake news que hoje se alastram, há uma base factual para tornar uma história absurda em algo plausível. No caso da alegação sobre Davis, está a atuação do FBI, entre os anos de 1956 e 1971, com um programa governamental de contrainteligência que envolvia a infiltração e a tentativa de desbaratar organizações políticas consideradas radicais e subversivas.

À época, LaRouche e seus seguidores estavam associados às ideologias da esquerda, mas foram gradativamente se voltando para a extrema direita. Como aponta Woods (2019), em 1977, o conspiracionista publicou um artigo na EIR em que alegava que a New Left havia se degenerado, tornando-se um movimento fascista violento. Contudo, quem estava rumo ao fascismo era o próprio LaRouche.

As teorias conspiratórias da seita foram tomando aspectos fortemente antissemitas e a Escola de Frankfurt foi se tornando um elemento-chave de um complô satânico-sionista com o objetivo de destruir a cultura americana (American Way of Life) e a civilização ocidental.

Outro fato que serviu ao conspiracionismo envolvendo Theodor Adorno tem a ver com sua participação no Radio Research Project, da Universidade de Princeton, financiado pela Fundação Rockefeller, entre 1938 e 1941 (JAY, 2011). Em 1982, a editora convidada Christina Nelson Huth, publicou um ensaio na EIR em que alegava que Adorno, como parte de sua pesquisa no referido projeto, estaria minando os valores e a moralidade do povo estadunidense, produzindo e promovendo novelas responsáveis por uma lavagem cerebral na audiência (WOODS, 2019).

Em 1989, quando foi condenado a 15 anos de prisão por conspiração e fraude, LaRouche declarou que era o último bastião entre a civilização ocidental e a “New Dark Age”, cujas forças acabariam por degradar o povo e permitir que a oligarquia europeia governasse o mundo (o filósofo marxista húngaro Georg Lukács teria sido o precursor dessa Nova Era Obscura, por ter conspirado para minar a cultura ocidental). Nessa esteira, Adorno teria trabalhado para desenvolver uma doutrina satânica a fim de mudar o paradigma cultural, culminando, a partir de 1964, na contracultura pautada por “sexo, drogas e rock’n’roll” (WOODS, 2019).

Posteriormente, outro conspiracionista, Daniel Estulin, em 2005 publicou um livro em que dizia que Adorno e a Escola de Frankfurt em parceria com os Rockefeller, colocaram em prática um plano de subverter a sociedade com a disseminação da cultura de massas, em especial o rock, um poderoso instrumento de alienação – e uma versão dessa história foi mencionada por Olavo de Carvalho e por Dante Mantovani, maestro nomeado em 2019 como presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte), que disseram ter sido Adorno o responsável por compor as músicas dos Beatles.

Curiosamente, Olavo de Carvalho considerava Lyndon LaRouche um conspirador nada confiável, apesar de reproduzir uma conspiração desenvolvida pelo próprio.

Antes de seu artigo mais conhecido, Michael Minnicino publicou, também na EIR, uma reportagem dividida em três partes, intitulada “The ‘Authoritarian Personality’: An Anti-Western Hoax”. Minnicino se dedica a deslegitimar o estudo, conduzido por Adorno, a partir do conceito proposto por Max Horkheimer, de “personalidade autoritária”. Na primeira frase da reportagem, traduzida do inglês, lê-se: “A ideia de ‘personalidade autoritária’, como tantos conceitos na sociologia, é uma fraude construída para desacreditar o republicanismo, particularmente sua forma americana, e para proteger o marxismo” (MINNICINO, 1988, p. 28 – tradução minha).

Contudo, foi o texto “The New Dark Age: The Frankfurt School and ‘Political Correctness’”, publicado em 1992 na revista Fidelio, que se tornou uma espécie de marco definidor de um “movimento politicamente correto”. Nele, Minnicino traz um panorama da teoria de LaRouche, de quem era um seguidor.

A questão em torno do “politicamente correto”, no entanto, precisa ser encarada também por uma outra vertente de articulação das direitas, considerada mais racional e que acabou por ser legitimada por uma série de formadores de opinião e intelectuais com visibilidade nos veículos de comunicação – tanto estadunidenses como brasileiros.

Rede de financiamento à direita

Para além de Lyndon LaRouche, um líder de seita que hoje tem pouca credibilidade, é preciso se atentar para como atores poderosos vêm se articulando há décadas com o objetivo de, efetivamente, influenciar a mentalidade coletiva e o campo da educação. As teorias da conspiração normalmente se ligam umas às outras, podem ser resgatadas e recicladas facilmente por sua própria natureza de servir a crenças e propósitos variados.

Como são histórias pautadas em conceitos vagos ou acontecimentos contingentes (ou ambas as coisas), servem ao exercício de se ligar os pontos conforme a necessidade de explicação dos eventos.

Na Guerra Cultural contemporânea, algumas teorias em específico têm exercido um papel central para que sejam disseminados a desconfiança e o ódio aos ideais progressistas de forma geral. Assim, sob o guarda-chuva do “marxismo cultural” estão as narrativas envolvendo o “politicamente correto” e a “ideologia de gênero”, planos que estão sendo colocados em prática por “globalistas” para impor um governo que representaria a “Nova Ordem Mundial”.

Antes de adentrar na disseminação dessas histórias, é necessário retornar à década de 1960 e às mudanças na sociedade ocidental — bem como às reações a tudo isso. A partir dos anos 1950 e, em especial, nos anos 60, os movimentos ativistas por direitos civis e pelas chamadas pautas identitárias foram se tornando cada vez mais visíveis. Nos Estados Unidos, o marco do Civil Rights Act, em 1964, os protestos contra a Guerra do Vietnã, bem como a contracultura e um sentimento de contestação das autoridades e do establishment representaram uma espécie de decadência do conservadorismo.

No espaço acadêmico, ocorreu também uma influência crescente da Escola de Frankfurt, pelo menos desde a década de 1930, além da emergência dos Estudos Culturais nos anos 1950 e, posteriormente, do pós-estruturalismo (particularmente no contexto do pós-guerra e do Maio de 68 na França). Sem adentrar nas especificidades das correntes teóricas, é importante saber que esses movimentos intelectuais serviram de base para o desenvolvimento de pesquisas sobre temas como identidade cultural e representação, dinâmicas das relações de poder, movimentos de resistência e questionamento dos saberes dominantes.

A base factual da teoria da conspiração que se tornará o “marxismo cultural”, portanto, são as mudanças no contexto acadêmico que passaram a refletir essas novas realidades sociais e a chegada de pessoas negras e latinas nos campi das universidades. Isso levou à mudança também nas grades curriculares do ensino superior (WEIGEL, 2016).

Nos Estados Unidos, a perda da hegemonia levou a direita conservadora a se organizar em busca de estratégias de reação para controlar o debate público. As ações de Roger Ailes no treinamento de Richard Nixon para as eleições presidenciais, a criação da Fox News e a atuação de organizações para retomar o controle das pautas midiáticas é bem retratada no documentário The Brainwashing of My Dad, de 2015, dirigido por Jen Senko.

Uma das organizações mencionadas por Senko é a Accuracy in Media (AIM), fundada em 1969. Apoiadora da Guerra do Vietnã, a AIM atribuía a culpa pela derrota dos EUA à mídia progressista, cujas críticas considerava enviesadas e antipatrióticas. Seu fundador, Reed Irvine, alegava que os jornalistas se mostravam excessivamente favoráveis aos protestantes e reclamava que os pontos de vista conservadores não tinham espaço na mídia (CHAPMAN, 2015).

As tentativas de barrar as mudanças e retomar o domínio na disputa pelo saber-poder ocorreram também no meio acadêmico. Expoentes do conservadorismo intensificaram sua campanha contra universitários, pesquisadores e catedráticos progressistas, atacando recorrentemente o que consideravam a “militância” de estudantes e professores nas universidades.

Em meados da década de 1970, redes de doadores se voltaram para o financiamento de instituições e institutos de treinamento, think tanks, bolsas de estudo, projetos de pesquisa e até mesmo cátedras. Segundo Moira Weigel (2016), o objetivo das doações era fomentar uma produção intelectual capaz de se contrapor ao que consideravam ser uma dominância da esquerda nos meios acadêmicos e formadores da opinião pública.

Sucessos de venda do conservadorismo

Em seu livro-manifesto, A Time for Truth (1979), William E. Simon, que fora Secretário do Tesouro durante a presidência de Richard Nixon, urge pela organização de uma “contrainteligência” capaz de “[…] lutar contra o ‘Novo Despotismo’ efetivamente” (SIMON, 1979, p. 244 — tradução minha). Para dar força e tornar essa contrainteligência influente, Simon defende que os pensadores sejam financiados por organizações como a John N. Olin Foundation, da qual o próprio Simon se tornou presidente após deixar o cargo de Secretário do Tesouro.

Livros produzidos por professores que criticavam o pensamento e a atuação daqueles que se dedicavam a linhas de pesquisa como estudos de gênero, teoria racial crítica, pós-estruturalismo e desconstrucionismo, entre outros, foram financiados por redes de doadores, incluindo as famílias Olin, Koch e Scaife (WEIGEL, 2016).

Algumas das obras que se tornaram best-sellers nos anos 1980 e 90 merecem atenção. Conforme explica Moira Weigel (2016), seus autores traziam reflexões e respostas às mudanças na academia, mas que com frequência eram desproporcionais e enganadoras. Weigel exemplifica com a reclamação de Allan Bloom em relação à “militância” de estudantes na Universidade de Cornell, onde ele deu aula na década de 1960: fato é, que o professor nunca mencionou que os alunos, que demandavam a criação de um departamento de estudos afro-americanos, estavam reagindo a um protesto por supremacistas brancos, em 1969, que culminou no aparecimento de uma cruz em chamas no campus (uma ameaça aberta pela Ku-Klux Klan). Não obstante, assim que o African Studies Center finalmente foi fundado, em 1970, um incendiário colocou fogo em sua sede.

Quando atuava como professor de filosofia na Universidade de Chicago, Allan Bloom publicou o livro The Closing of the American Mind, em 1987. Nele, sugere que as almas e mentes dos estudantes estariam se tornando empobrecidas devido a um excesso de relativismo e abertura do pensamento acadêmico que estaria se sobrepondo aos “direitos naturais” (BLOOM, 1987, p. 29 – tradução minha).

Para Bloom, a culpa seria, em partes, de uma nova forma de teoria crítica e também de uma “[…] rebelião política contra as últimas restrições da natureza”. Direcionando suas críticas aos estudantes negros, o autor os responsabiliza por se manterem segregados, transformando em vítimas os brancos que, supostamente, não seriam aceitos nas rodas de pessoas negras e ainda se sentiriam desconfortáveis para abordar o problema.

Dessa forma, o professor ignora aspectos complexos da convivência em uma sociedade estruturalmente racista e violenta que apenas havia recentemente aprovado uma Lei contra a segregação institucional da população negra. Ele retorce a questão para tentar argumentar que são os excluídos que, aparentemente, rejeitam a inclusão. Ademais, Bloom descarta a manutenção de uma mentalidade racista entre alunos brancos, como se a Lei tivesse sido suficiente para dar fim à reprodução de violências simbólicas diretas e indiretas e manifestações racistas.

Nos EUA, o livro de Bloom vendeu mais de 500 mil cópias, servindo de inspiração para outras obras e artigos que se seguiram. Sua tradução para o português foi publicada no Brasil em 1989, com o título de “O declínio da cultura ocidental: da crise da universidade à crise da sociedade”.

A título de informação: Bloom era codiretor do Centro John M. Olin de Pesquisa sobre Teoria e Prática da Democracia.

Retornando a William E. Simon, este criticou, em seu livro, aquilo que chama de “nível coercitivo de igualitarismo” (1979, p. 240 – tradução minha), uma reação às ações afirmativas para inclusão de estudantes negros e latinos nas universidades. Simon alega que a academia estaria sendo controlada pela New Left, cujos “instintos totalitários” resultam em “tendências destrutivas” (1979, p. 242 – tradução minha).

Em 1985, Reed Irvine fundou o Accuracy in Academia, com o objetivo de documentar e se contrapor ao viés político nas universidades. Em relação a essa organização, começaram a se espalhar boatos de que seus membros estariam se infiltrando em salas de aula com gravadores, a fim de registrar falas de alunos e professores que estivessem, por exemplo, defendendo questões como o “politicamente correto” (HUNTER, 1991).

Nessa esteira, Roger Kimball publicou, em 1990, Tenured Radicals: How Politics Has Corrupted our Higher Education, cuja tradução para o português também foi lançada no Brasil, com o título de Radicais nas universidades: Como a política corrompeu o ensino superior nos EUA (2009). Kimball é editor do jornal conservador The New Criterion, passou a atuar no conselho do Manhattan Institute e foi presidente do William F. Buckley, Jr. Program, na Universidade de Yale.

Em seu livro, o autor também defende que progressistas estariam promovendo um ataque ao cânone ocidental nas universidades. Seguindo o pensamento de Bloom, Kimball responsabiliza movimentos como o feminismo e os estudos de gênero pela suposta tentativa de desmantelamento dos valores por ele considerados universais. Na introdução, com tom alarmista, aponta: “Proponentes da desconstrução, dos estudos feministas e de outras críticas aos pilares tradicionais do estudo humanístico já se tornaram a voz dominante nos Departamentos de Humanidades de muitas das nossas melhores faculdades e universidades. […] O objetivo deles é nada menos que a destruição dos valores, métodos e metas do tradicional estudo humanístico”(KIMBALL, 2009 [1990], p. 21).

Considerando estar em curso uma “guerra contra a cultura ocidental” (KIMBALL, 2009 [1990], p. 23), o autor demonstra preocupação com os ataques ao cânone literário tradicional e a culpa seria dos pensadores radicais que passaram a ocupar as cadeiras das universidades, promovendo aulas e pesquisas ideologicamente motivadas.

Mesmo não tendo usado especificamente a expressão “politicamente correto” em seus livros, Simon, Bloom e Kimball demonstram um pensamento alinhado ao discurso conspiratório que servirá para trazer legitimidade à ideia de que estaria sendo imposta uma verdadeira patrulha do pensamento e da linguagem a partir do ensino superior.

Entra em cena o “politicamente correto”

Um artigo influente, desta vez usando, de fato, o termo usado para tratar do suposto policiamento, apareceu em 28 de outubro de 1990, no jornal The New York Times: “The Rising Hegemony of the Politically Correct”, escrito pelo jornalista e crítico cultural Richard Bernstein. Este teria sido o provável responsável pelo início da disseminação da expressão por meio da mídia.

No artigo, o repórter faz um relato — em tom devidamente alarmista – sobre como teria testemunhado, na Universidade da Califórnia em Berkeley, uma suposta ideologia não oficial sendo imposta nas universidades. Ele narra que movimentos radicalizados têm, desde a década de 1960, forçado uma visão de que a sociedade ocidental tem sido dominada pela “estrutura de poder branca masculina” ou pela “hegemonia patriarcal”.

Bernstein questiona o discurso em torno do silenciamento e as críticas acerca do estabelecimento do “Outro”, dando a entender que não haveria esse tipo de repressão.

Citando alguns títulos de trabalhos acadêmicos apresentados em eventos de História e Literatura, o jornalista afirma, então, que todos são politicamente corretos – previsivelmente, tratam-se de estudos de gênero, gays e lésbicos (à época não se falava em “estudos queer”), teoria crítica racial e assim por diante. Bernstein, no entanto, não traz uma delimitação apropriada do conceito de “politicamente correto”, nem uma explicação para sua constatação.

Nas palavras do jornalista, o politicamente correto poderia ser definido como “uma grande crença na academia e em outros lugares que um conjunto de opiniões sobre raça, ecologia, feminismo, cultura e política externa define um tipo de atitude ‘correta’ em relação aos problemas do mundo, uma espécie de ideologia não oficial da universidade”.

A escolha de palavras de Bernstein ao longo do artigo dá a entender que esse conjunto de ideias tem bases altamente simplistas e exige posicionamentos inequívocos, sem nuances ou reflexões complexas. Citando a crítica de Kimball à politização dos estudos das humanidades, o jornalista coloca conservadores e liberais clássicos como os principais atingidos, reforçando a lógica vitimista.

O uso da expressão “politicamente correto”, de fato, foi apropriado por pessoas da direita, segundo Bernstein, “[…] para descrever o que veem como uma intolerância crescente, um fechamento de debate, uma pressão para se conformar a um programa radical ou o risco de serem acusados de um trio de crimes de pensamento comumente reiterados: sexismo, racismo e homofobia”.

Quando o jornalista lança mão da denominação “crimes de pensamento” — uma referência ao livro 1984, de George Orwell —, minimiza os efeitos longevos e estruturais da normalização precisamente do machismo, do racismo e da homotransfobia no discurso e nas representações. Nesse sentido, Bernstein parece se preocupar muito mais com o modo como as lutas sociais têm buscado responsabilizar as instituições pela perpetuação de exclusões e violências simbólicas que passam a fazer parte do imaginário da população.

Os artigos que se seguiram na imprensa, em geral, utilizavam a mesma fórmula, partindo de uma ou mais anedotas envolvendo episódios que teriam acontecido em algum campus como evidência irrefutável desse “policiamento” de discursos, pensamentos e atitudes nas universidades estadunidenses. Foram publicadas histórias versando sobre o suposto fenômeno em veículos como Newsweek, New York Magazine, Atlantic Monthly, New York Review of Books, entre vários outros (BERKOWITZ, 2003).

Outro artigo a citar o “politicamente correto” e que merece atenção foi publicado em 1991, na edição n. 84 da revista Foreign Policy, intitulado “Defending Western Culture”. Escrito por William S. Lind, em sua introdução, é possível ler que radicais do “politicamente correto” seriam responsáveis por um ataque à cultura ocidental e pela decadência de instituições como a família.

Quanto mais o termo “politicamente correto” era usado pela mídia e circulava, maior e mais real parecia ser essa ameaça imaginária que servia — e ainda serve — para transformar a direita conservadora em vítima daquilo que ela continua a retratar como um ativismo radical, enquanto nega as complexidades ideológicas da discussão.

Notadamente, as acusações direcionadas a progressistas desviam a atenção da necessidade de responsabilização por falas, representações e atitudes que sejam racistas ou homofóbicas, por exemplo. Como explica Moira Weigel (2016), uma pessoa nunca se autointitula “politicamente correta”, pois esta se tornou uma acusação com fins de expor certa hipocrisia, um distanciamento entre aquilo que se pensa e aquilo que se fala. Ademais, é um modo de desmerecer determinadas discussões, vistas como tendo menor ou nenhuma importância pela pessoa que se coloca contra o “politicamente correto”. Ao fazer essa classificação de certas pautas, ela se isenta de ter que considerar mudanças em seu próprio discurso, na forma como fala e/ou age, ignorando demandas de grupos que historicamente são alvos de opressão e exclusão social.

Breve reflexão sobre linguagem e códigos compartilhados

O papel da linguagem e da representação, aqui, precisa ser abordado porque as pautas em questão estão ligadas a um esforço pela redução de violências simbólicas que perpetuam estereótipos discriminatórios, excludentes, associações negativas e insultos por vezes naturalizados como “piadas”. Linguagem e representação se encontram na base do processo de desumanização de grupos e identidades.

A produção e o compartilhamento de sentidos não se dissociam dos valores culturais dominantes, pelo contrário, costumam reforça-los. Questionar os códigos estabelecidos pelas linguagens significa questionar também esses valores, em especial quando eles servem ao apagamento de diversidades e à continuidade de exclusões.

A problematização dos discursos, a desconstrução das grandes narrativas utópicas eurocentradas, bem como das verdades que se pretendem universais – mas que na prática são altamente excludentes –, a rejeição de lógicas hegemônicas que têm norteado a produção de um saber eurocêntrico ao longo da história, tudo isso se mostrou fonte de incômodo para aqueles que se mantêm apegados às epistemologias dominantes. Nesse ponto, é compreensível que sejam as teorizações ligadas aos Estudos Culturais, ao pós-estruturalismo, à desconstrução, ao saber decolonial e a outras correntes críticas afins os grandes alvos de conservadores temerosos como uma suposta ditadura do politicamente correto.

Muito embora não exista essa ditadura, é ameaçador, para quem se acostumou a ter suas ideias prontamente acatadas e ovacionadas, receber críticas e questionamentos daquilo que no passado era apresentado como inquestionável. O estímulo a desconfiar, inquirir, a criar instabilidade, a elaborar incertezas diante daquilo que se tinha como fixo, imutável, é realmente uma ameaça às estruturas de saber que ocupavam o poder em instituições como a própria universidade.

Colocar-se contra o “politicamente correto” é uma atitude motivada pelo interesse na manutenção de crenças e privilégios, pela recusa à revisão de percepções, preconceitos e atitudes negativas em relação a questões étnico-raciais, de gênero, sexualidade e assim por diante.

Do politicamente correto ao marxismo cultural

Uma opinião: William S. Lind não tem o destaque que deveria nos debates sobre a extrema direita e conspiracionismo no Brasil. Ignorado no livro Tempestade ideológica, seu papel foi citado de forma bastante superficial na obra Tudo o que você precisou desaprender para virar um idiota. Alguns artigos mencionam William Lind como grande difusor da teoria do “marxismo cultural”, mas, em geral, direcionam o foco para o texto de Minnicino.

No entanto, apesar de Minnicino ser a principal fonte das ideias de Lind, parece ter sido este o responsável por, na verdade, cunhar o termo “marxismo cultural” propriamente dito – porém, não consegui confirmar se o primeiro a usar a expressão foi Lind ou Paul Weyrich, figura que descreverei mais adiante.

De forma sintomática, a referência a seu nome ocorre mais entre pessoas que abordam teorias de guerra e táticas militares. Isso porque Lind é um dos principais teóricos sobre a chamada guerra de 4ª geração. Respeitado no âmbito militar estadunidense, ministrou inúmeras palestras, inclusive em Quantico, a sede do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos.

Confesso não ter realizado uma pesquisa exaustiva sobre quais pessoas estudiosas da extrema direita abordaram com profundidade a atuação de Lind, especialmente na conexão entre o conspiracionismo e as teorias de guerra. Ainda assim, o que falta é mostrar como: 1) esse autor, por ser altamente respeitado entre parte dos militares, tem um espaço nas Forças Armadas para disseminar suas teorias conspiratórias; e 2) todas as ideias de Olavo de Carvalho sobre o “marxismo cultural” são diretamente copiadas de Lind.

A questão do plágio apenas foi levantada por Sabrina Fernandes, em evento organizado pela Agência Pública, com trechos de suas falas transcritos na página Pública, em 2019 e, de forma sugerida, por Daniela Mussi e Alvaro Bianchi em artigo publicado em 2022 na Revista Brasileira de Ciência Política. Embora o nome “marxismo cultural” tenha sua inspiração óbvia no termo “bolchevismo cultural”, a teoria conspiratória nazista pode não ter sido a fonte direta usada por Lind – porém, é inegável que existem semelhanças entre ambas e possível inspiração.

A definição aparentemente foi feita por Lind em palestra ministrada em conferências organizadas pela Accuracy in Academia e transcrita sob o título “The Origins of Political Correctness” (LIND, 2000). A primeira vez em que o autor ofereceu a palestra foi em 1998. No texto, aponta, em relação ao politicamente correto: “Se olharmos analiticamente, se olharmos historicamente, rapidamente descobriremos exatamente o que é. O politicamente correto é marxismo cultural. É o marxismo traduzido de termos econômicos para culturais. É um esforço que remonta não aos anos 1960 e aos hippies e ao movimento pela paz, mas à Primeira Guerra Mundial” (LIND, 2020, s.p. – tradução minha).

Existe, ainda, uma carta aos conservadores redigida por Paul Weyrich, de 1999, que também aponta que o “politicamente correto” deveria ser chamado, mais apropriadamente, de “marxismo cultural”. O texto refere-se igualmente a uma palestra ministrada pelo ativista em diversos eventos.

Mas quem é William S. Lind?

William Sturgiss Lind obteve seu bacharelado em História pela Darmouth College em 1969 e seu mestrado, também em História, pela Princeton University em 1971. Ele não chegou a concluir o doutorado, tendo entrado em contato em 1973 com o então senador republicano Robert Taft Jr., seu conterrâneo de Cincinnati, Ohio, de quem se tornou assessor legislativo. Como o senador era membro do Comitê sobre Serviços Armados, Lind começou a estudar sobre defesa e teorias militares.

Com o fim do mandato de Taft Jr., Lind foi, então, assessorar o senador democrata Gary Hart, do Colorado, com quem trabalhou de 1977 a 1986, também em relação aos projetos legislativos sobre as Forças Armadas.

Em 1985, publicou o livro Maneuver Warfare Handbook, a respeito da chamada guerra de manobra, expressão que não pode passar despercebida no atual cenário de ascensão da extrema direita e tentativa de permanência no poder.

Em suma, a guerra de manobra visa a evitar um confronto direto, dando ênfase à capacidade de tomar decisões rápidas e agir na frente do inimigo. Segundo Lind: “A guerra de manobra significa que você não apenas aceitará a confusão e desordem e irá operar com sucesso dentro dela, através da descentralização, mas você também gerará confusão e desordem”.

Lind ministrou uma palestra em 1988 à Marinha estadunidense (United States Marin Corps – USMC), a fim de explicar acerca da guerra de manobra. Em 1989, publicou o artigo “The Changing Face of War: Into the Fourth Generation”, em coautoria com dois oficiais da Marinha e dois do Exército norte-americano, veiculado no Marine Corps Gazette, periódico fundado pelos próprios fuzileiros navais.

William Lind é, desde então, considerado um dos teóricos principais da guerra de 4ª geração, gozando de respeito entre oficiais e admiradores do militarismo – obviamente, foi alvo também de muitas críticas por nunca ter sido, ele mesmo, um militar. Uma de suas palestras, ministrada em Quantico em 2000, foi transformada em e-book e tiro dela algumas citações e ideias apontadas por Lind, sem adentrar em cada uma das gerações de guerra.

Segundo o historiador (LIND, 2014), uma das características que conferiu grande êxito ao exército alemão na Segunda Guerra Mundial foi a de que os militares não aguardavam por ordens. A disciplina apenas era imposta no início do treinamento, mas, no ato das operações, é possível experimentar, sendo favorecida uma cultura da iniciativa. Isso porque o militar é responsável por trazer resultados, sendo os métodos para tanto pouco importantes.

Na guerra de 4ª geração, o Estado não detém mais o monopólio da guerra, havendo uma mudança em quem são os indivíduos que lutam e os motivos pelos quais lutam. As lutas são encampadas por múltiplas entidades, de forma que os oponentes estão em constante mutação. Sendo assim, para Lind, o que há, no fim do século XX e início do XXI, são culturas em guerra – e não mais Estados em guerra (LIND, 2014).

Portanto, a atual guerra é descentralizada por completo, desordenada, não havendo hierarquia a ser obedecida. Assim, o objetivo é passar por cima do indivíduo, quem quer que seja, e atacar a sociedade — ou o modelo de sociedade.

Aqui, vale ressaltar que William Lind é um paleoconservador, que vê a sociedade ocidental moderna como um verdadeiro sinônimo de caos e crise. Para ele, é necessário buscar qualquer mínimo resquício de civilização cristã na qual se agarrar para sobreviver (LIND, 2014). Essas teorizações oferecem um vislumbre em torno da própria guerra que observamos acontecer rumo às eleições presidenciais de Donald Trump e, posteriormente, de Jair Bolsonaro. As táticas são descentralizadas, por vezes experimentais, pois o que importa são os resultados. Quem está lutando não precisa aguardar por ordens.

Uma guerra neoliberal conservadora

A atuação de William Lind não se restringe ao âmbito militar. Ele mesmo se considera um ativista de profissão, estando ligado a uma série de organizações conservadoras.

No início deste texto, apontei como uma rede de financiamentos atuou para criar uma contrainteligência capaz de dar à direita conservadora o controle no debate público. Lind está entre os propagadores dessa contrainteligência, colocando em prática suas táticas de guerra no campo cultural.

Entre os think tanks que receberam financiamento de doadores interessados em disseminar o conservadorismo esteve a Free Congress Foundation (FCF), fundada em 1977 por Paul Weyrich, com quem Lind teve uma relação prolífica na redação de artigos e na produção, em especial, de um “documentário” sobre o “politicamente correto” e a Escola de Frankfurt. William Lind atuou como Diretor do Centro de Conservadorismo Cultural da instituição até 2009.

No ano de 1999, o canal de TV a cabo National Empowerment Television, patrocinado pela FCF, exibiu um programa de uma hora de duração intitulado “Political Correctness: The Frankfurt School”, produzido por Lind e que contou com a participação também de Weyrich, Roger Kimball, David Horowitz e Reggie White.

Em seu artigo sobre o uso da Escola de Frankfurt como bode expiatório, Martin Jay – este, sim, estudioso do movimento e responsável pelo primeiro livro em língua inglesa a contar sua história – revela que foi convidado a participar do referido programa e teve suas falas editadas para que se encaixassem com aquilo que os produtores desejavam dar a entender.

Não tendo sido informado da agenda ao receber o convite dos responsáveis, o pesquisador parece ter passado por um processo semelhante ao ocorrido em 2017 com historiadores que tiveram suas falas incluídas em programa exibido pelo History Channel, sem que houvesse transparência a respeito da linha seguida pela produção.

Posteriormente, a FCF lançou uma videotape intitulada “Political Correctness: The Dirty Little Secret” a partir do referido programa e disponibilizou o conteúdo em 2011 em seu canal no YouTube.

À época do lançamento do “documentário”, um grupo que se empenhou em distribuir cópias do vídeo, adicionando uma breve introdução, foi o Council of Conservative Citizens, uma organização supremacista estadunidense fundada em 1985.

William Lind seguiu escrevendo de forma recorrente acerca do “politicamente correto” e do “marxismo cultural”. Em artigo publicado em 2009 na página The American Conservative, com a qual colabora até os dias atuais, Lind aponta que a “diversidade” seria um dos “falsos deuses do ‘politicamente correto’” e segue com partes copiadas de seu discurso de 1998 para o grupo AIA.

Sobre Paul Weyrich, que também escreveu uma série de textos abordando o “marxismo cultural”: ele foi cofundador, ainda, dos think tanks The Heritage Foundation e American Legislative Exchange Council (ALEC). Além disso, criou também o grupo Moral Majority, juntamente com o pastor batista e televangelista Jerry Falwell Sr., organização que esteve associada com a direita cristã e o Partido Republicano.

Em outubro de 2000, em declaração ao jornal Rocky Mountain News, o político paleoconservador Pat Buchanan acusou nativos americanos que protestavam contra um desfile comemorativo do Columbus Day (ou Dia de Colombo) de estarem promovendo “marxismo cultural” (BERKOWITZ, 2003).

Em junho de 2002, William Lind deu uma palestra em uma conferência organizada por negacionistas do Holocausto, entre eles Willis Carto, fundador do Institute for Historical Review. Na conferência, falou sobre o “marxismo cultural” e ressaltou que os responsáveis pela conspiração eram “todos judeus” que “envenenaram a cultura americana” (BERKOWITZ, 2002).

Outro “marco” em relação a essa teoria da conspiração é o documento editado por William Lind em 2004, a pedido da FCF, e que se tornou uma referência do tema: Political Correctness:” A Short History of an Ideology.

No Brasil, Olavo de Carvalho copia William Lind

Em sua trilogia iniciada com A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra e Antonio Gramsci, de 1994, Olavo de Carvalho aborda repetidamente a tese sobre a imposição, pela esquerda, de uma mudança na cultura que será responsável pela implementação de seus ideais, com base nas proposições especialmente de Gramsci.

No livro seguinte, O jardim das aflições, de 1995, o escritor flerta ainda mais com teorias da conspiração, pretendendo abordar uma espécie de história do Ocidente. Nele, Olavo chega a comparar o processo de influência das mentes pelo marxismo/gramscismo com a prática da Programação Neurolinguística (PNL), uma pseudociência ainda hoje vendida por coaches. O autor ainda inclui Hegel como responsável pela implementação do “politicamente correto”.

Na edição comemorativa de 20 anos do lançamento da obra, há uma entrevista concedida a Silvio Grimaldo – que se tornou um braço direito de Olavo, diretor executivo da página Brasil Sem Medo e editor-chefe da Vide Editorial – em que diz ser a esquerda a responsável por trazer “o laicismo, o feminismo, gayzismo, animalismo e toda essa herança cultural que chegou aos EUA por meio da Escola de Frankfurt e que formou aquilo que, inadequadamente, podemos chamar de marxismo cultural” (CARVALHO, 2015, p. 301). Curiosamente, o escritor aborda os “paleocons” ou paleoconservadores e seu interesse “em manter a sociedade fiel às suas tradições de origem” (CARVALHO, 2015, p. 301), mas não cita William S. Lind.

Foi o terceiro livro da referida trilogia, no entanto, O imbecil coletivo, de 1996, que projetou Olavo com auxílio de jornalistas da grande mídia brasileira. A obra, reeditada, revista e incrementada diversas vezes, tem como um de seus focos centrais o ataque à intelectualidade acadêmica associada ao “[…] empreendimento gramsciano de devastação cultural” (CARVALHO, 1999 [1996], p. 26). Nela, o autor cita com mais frequência o “politicamente correto”, mas não utiliza a expressão “marxismo cultural”, a qual apenas irá aparecer em 2002 em seus escritos.

Retornando a O imbecil coletivo, é notório como o livro foi bem recebido por jornalistas influentes. Paulo Francis, por exemplo, indicou a obra a Wagner Carelli, editor da revista Bravo!, que então o convidou para ser colunista da publicação (JC ONLINE, 2017). Francis também se esforçou para divulgar o pensamento de Olavo, tornando-se um fã desde que leu a obra de 1996.

Outro elogio ao livro partiu do diplomata e economista Roberto Campos, que publicou uma resenha em sua coluna para a Folha de S. Paulo em setembro de 1996. No mesmo ano, Olavo foi entrevistado por Pedro Bial, no programa Bom Dia Brasil, e o apresentador classificou a obra como um “volume demolidor”. Tendo a oportunidade de expor suas ideias ao grande público, afirmou que, por estrem adotando a “estratégia gramsciana”, pessoas da esquerda brasileira iriam ascender através de uma revolução cultural.

Em grande parte, essa recepção positiva por indivíduos considerados intelectuais, formadores de opinião que conferiram uma validação a Olavo de Carvalho. O que se nota é uma penetração do escritor numa intelectualidade da direita que remonta pelo menos a meados dos anos 1990. Uma de suas teorias conspiratórias principais, o “politicamente correto” e a suposta dominação da esquerda na cultura e no ensino superior, foi bem recebida por conservadores incomodados com a presença da esquerda nas universidades – influenciados, certamente, também pelas narrativas veiculadas na mídia estadunidense.

Saliento, contudo, que Olavo não menciona Lind ou Weyrich nem mesmo no artigo “Do marxismo cultural”, publicado em junho de 2002 no jornal O Globo, muito embora o texto reproduza todas as ideias veiculadas pelo paleoconservador em seu texto-palestra “The Origins of Political Correctness” (2000). Nesse sentido, notadamente, a relação evidente entre esses ativistas paleoconservadores e Olavo passou despercebida por aqueles intelectuais da direita brasileira que continuaram a validar o escritor e autodeclarado filósofo como pensador e polemista.

Flávio Henrique Calheiros Casimiro, pesquisador em História contemporânea da chamada “Nova Direita”, aponta para como Olavo foi uma figura de destaque nas edições do Fórum da Liberdade dos anos 2000, 2001, 2002, 2004 e 2005 (CASIMIRO, 2020). O evento, organizado desde 1988 pelo Instituto de Estudos Empresariais com apoio do Instituto Liberal, “[…] foi palco para o lançamento público de alguns dos principais aparelhos da nova direita brasileira” (CASIMIRO, 2020, p. 88), dentre eles o Instituto Millenium, o Instituto Mises Brasil, o grupo Estudantes pela Liberdade e a produtora Brasil Paralelo.

O Fórum da Liberdade contou, desde seu início, com a presença de representantes internacionais do libertarismo e de ideias conservadoras. O modelo de financiamento de organizações e de intelectuais nos Estados Unidos foi também importado para o Brasil. O Instituto Liberal e o Estudantes pela Liberdade, braço nacional do Students for Liberty, são parceiros da Atlas Network, que tem entre seus doadores justamente a família Koch que, entre outras, financiou a Heritage Foundation de Paul Weyrich.

Ora, se Olavo de Carvalho é responsabilizado pelo pensamento e pela doutrinação que levou à ascensão da extrema direita no Brasil, não é possível deixar de lado, em um livro que pretende explicar esse movimento, a atuação desses institutos e think tanks para alçar Olavo ao status de guru.

Um grande número de associados a essas organizações figurou e ainda figura como colunista em veículos midiáticos de grande circulação, a exemplo de Helio Beltrão, fundador e presidente do Instituto Mises Brasil, que publica textos na Folha de S. Paulo – em novembro de 2022, chegou a defender os questionamentos de Marcos Cintra em relação às eleições presidenciais. Com pensamentos próximos ao do olavismo, Beltrão teria sido um dos precursores a tratar do “marxismo cultural” no Brasil, juntamente com Olavo (CASIMIRO, 2020).

Rodrigo Constantino, hoje reconhecido teórico da conspiração, é um dos fundadores e membro dirigente do Instituto Millenium – em que Paulo Guedes figura no Conselho de Curadores – e foi presidente do Instituto Liberal – o qual tem os nomes de Ricardo Vélez Rodríguez e Salim Mattar em seu Conselho Superior. Constantino escreveu para o Valor Econômico, O Globo e IstoÉ, tendo sido colunista regular da revista Veja de 2013 a 2015. Escreveu, ainda, para o portal R7 e a página Gazeta do Povo. Como comentarista, esteve na Rádio Guaíba, no programa Record News até 2020 e, atualmente, aparecia no canal Jovem Pan, do qual foi recentemente demitido.

Uma visita às páginas do Instituto Mises Brasil e do Instituto Liberal, por exemplo, mostra como os colunistas e membros são defensores da existência do “marxismo cultural” e condenam, com frequência, o “politicamente correto”.

Não pretendo, aqui, estabelecer todas as ligações possíveis entre essas organizações e a extrema direita propriamente dita, ou mesmo com Olavo de Carvalho, mas faz-se importante ter em mente que não foi o autointitulado filósofo o único a trazer o pensamento conspiratório para a direita brasileira.

Em certa medida, parece ter atuado como um pivô em um ecossistema que já existia antes dele e que muito provavelmente era influenciado pelo pensamento de conservadores, paleoconservadores e libertários da direita estadunidense, bem como pela própria grande mídia aderente ao suposto fenômeno da “ditadura do politicamente correto”.

Em 2013, o lançamento do livro O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, mais uma vez, rendeu comentários bastante positivos por parte de formadores de opinião. Entre eles estava Reinaldo Azevedo, que, em sua coluna para a revista Veja, foi altamente elogioso da iniciativa de Felipe Moura Brasil, organizador da obra, além de enaltecer profundamente o próprio Olavo de Carvalho.

Nas palavras de Azevedo, o livro “[…] reúne, basicamente, artigos que Olavo publicou em jornais e revistas, inclusive nas revistas ‘República’ e ‘BRAVO!’, das quais fui redator-chefe — e a releitura, agora, em livro, me remeteu àqueles tempos. Impactam ainda hoje e podiam ser verdadeiros alumbramentos há 10, 12, 13 anos, quando o autor, é forçoso admitir, via com mais aguda vista do que todos nós o que estava por vir. Olavo é dono de uma cultura enciclopédica — no que concerne à universalidade de referência […]. Consegue, como nenhum outro autor no Brasil — goste-se ou não dele —, emprestar dignidade filosófica à vida cotidiana, sem jamais baratear o pensamento. Isso não quer dizer que não transite […] com maestria no terro da teoria e da história”.

Anteriormente, em 2008, Azevedo ainda divulgou uma entrevista de Olavo ao JB Online, reproduzindo trechos em sua coluna. Somente quando o escritor, na onda dos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff, associou-se ao bolsonarismo, o jornalista passou a criticá-lo, então usando a palavra “filósofo” entre aspas.

Uma aproximação das ideias de Reinaldo Azevedo com as descritas neste artigo, inclusive, pode ser observada em outro texto por ele publicado em 2008, com o título “Há mais comunistas na universidade brasileira do quem [sic] em Pequim”.

Outra figura que tem destaque na mídia, como comentarista político, e que divulgou avidamente o trabalho de Olavo é Felipe Moura Brasil, que organizou O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota e continuou a elogiar o escritor, mesmo após sua associação com Bolsonaro – a quem, na verdade, apoiou como candidato à presidência em 2018. Em sua coluna para a revista Veja – veículo para o qual começou a escrever em 2013 –, publicou um texto em homenagem a Olavo, na ocasião de seu aniversário, no ano de 2014, intitulado “Olavo tem razão. Parabéns, professor”. Divulgou também seus vídeos com entrevistas de Jair Bolsonaro e Flávio Bolsonaro, feitas em 2016.

Ignorar o papel crucial que tiveram os institutos e think tanks neoliberais, liberais e libertários na ascensão da extrema direita, bem como a abertura da imprensa para membros dessas organizações, é uma falha de pesquisa que direciona ao engano de quem entende o atual cenário em que o Brasil e outros países se encontram.

Também não é possível negar como a grande mídia ofereceu um caminho sem obstáculos para que essas ideias radicalizadas fossem devidamente divulgadas.

Ainda que jornalistas e comentaristas – e também o MBL – tenham criticado Olavo de Carvalho e o governo de Jair Bolsonaro, isso não isenta esses indivíduos de sua contribuição para que essa extrema direita – sem assim ser chamada – tivesse visibilidade e chegasse ao poder.


Veja todas as referências para esse artigo.



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