Ano novo é uma época que evoca um tanto de emoções e é, para mim, o melhor exemplo de como somos profundamente envolvidos com ideias que nos deram de presente. Aquele sentimento se estende para além das reflexões conhecidas como ansiedade, metas. Há uma sensação irracional de que não comemorar ou o fazer da forma errada poderia ter alguma consequência. A correria para organizar uma festa ou de se arrumar, organizar para ir a alguma outra, a agonia de empacotar de vez o ano. Fã de comemorar ou não, o momento do “meu deus, ano novo!” parece quase inevitável. O calendário, uma dessas ideias que ganhamos de presente, altera algo na química do nosso cérebro ano após ano.
Mas como seria o calendário se o tempo parece passar, independente de nossas cabeças quererem ou não? Para alguns povos do Norte, como os romanos, o ano já foi composto por 10 meses, cuja contagem iniciava-se ao lado da primavera no hemisfério. Após a adesão de outros dois meses e uma mudança na contagem dos dias por necessidades do Senado romano — e, finalmente, a queda do Império Romano — foi o avanço do cristianismo que nos aproximou mais do calendário como conhecemos hoje. Nessa época do ano, meados de fevereiro, aquela parte histórica do mundo via o tempo como janeiro, mas comemorar e homenagear a Jano pegava mal, então eles tiveram que dar um jeito.
Exceto se você seja uma das pessoas que se orgulhe de estar fora da Matrix, é sempre engraçado — na falta de outras palavras — pensar que coisas tão importantes para o cotidiano como a organização do tempo através de dias e anos possa ser flexibilizado conforme os interesses econômicos, sociopolíticos e religiosos.
Com os ajustes matemáticos, astronômicos e religiosos, o Papa Gregório XIII criou, em 1582, o Calendário Gregoriano, que usamos atualmente. Acontece que, naquele mesmo período, a Europa começava o processo de “importar” produtos de outras partes do mundo e exportar objetos como calendários, assim decidindo qual seria a convenção adotada para facilitar as relações financeiras e políticas com as colônias. Isso subjugou e ignorou a existência de outros calendários, sempre associadas às tradições e crenças locais. A decisão final foi do campeão de exportações, por assim dizer.

Em algum momento da história, alguém comprou ou foi forçado a acreditar em uma ideia que concordamos ao nível social até hoje, exista ela no “mundo real” ou não. A ideia do calendário possui sua utilidade, mas como nenhuma cultura pode ignorar aspectos fundamentais refentes às suas tradições, atribuímos o “todo” a uma série de ansiedades e rituais. Esse gosto e tendência desesperada do humano em tentar dar sentido a uma vida absurda, era também objeto de interesse do existencialismo, corrente filosófica com seu apogeu na década de 1950.
Partindo do princípio de que não há sentido no mundo além do sentido que nós, humanos, atribuímos, construímos e definimos, o pensamento existencialista girava em torno dos humanos, seus sentimentos e formas de viver através das quais tentamos atenuar a angústia existencial. Essas seriam nossas escolhas de como guiar nossas vidas, sempre influenciadas por relações interpessoais que desenvolvemos com outros e o contexto presente. Todos esses elementos possibilitam um sentido ao mundo e uma existência sem essência.
É essa atribuição de sentidos que faz com que o calendário acordado mundialmente ser uma convenção para regular o mercado financeiro, que não consegue atingir sua completude sem as tradições culturais de todo final de ano, onde você mesmo se cobra pelo que construiu para sua vida em míseros 365 dias.
“Então, é Natal” pode parecer uma frase simples e sem qualquer sentido além da festividade religiosa. Porém, ao analisar seus detalhes, observa-se que a frase sempre fará sentido ao ouvinte, uma vez que o alerta de que o final do ano chegou.
Dasein
Um clássico Coming of age, o filme Kiki’s Delivery Service conta a história de Kiki, uma garota de treze anos que sai da casa onde mora com seus pais para seguir a tradição das bruxas de sua família, em busca de outra cidade onde possa realizar seu treinamento e descobrir sua habilidade. Acompanhamos o choque de realismo que é se estabelecer em outra cidade, as novas responsabilidades, laços, imprevistos e infortúnios decorrentes e um episódio do pode ser chamado de burnout, quando a protagonista, desprovida da magia, também sua fonte de trabalho, não sente mais vontade ou inspiração na vida.
Ano novo é uma época que evoca um tanto de emoções e a mim, é o maior exemplo de como estamos profundamente envolvidos com ideias presenteadas a nós, séculos atrás. O sentimento esquisito de insatisfação e angústia de estende para além da ansiedade, havendo uma sensação quase que irracional de que não comemorar o passar do ano – ou fazê-lo de forma “incorreta” – pode ter alguma consequência para o seu carma. A correria de organizar uma festa ou se arrumar para uma comemoração, empacotar de vez o ano, jogar pendências acumuladas há meses para o ano que vem. Goste ou não de tradições, a comemoração ao ver a mudança nos ponteiros do relógio de meia-noite para meia-noite e um é quase inevitável.
O anime ilustra muito bem o momento em que, após as celebrações, você precisa começar a tomar parte das decisões em solitude — e decidir o que quer para sua vida pessoal, relacionamentos, sua carreira ou estudos naquele ano. O mais engraçado é que essa representação é ironicamente bem elaborada, considerando que a protagonista Kiki é uma garotinha com brilho nos olhos e um cenário cottage core animado.
Essa dissonância cognitiva está presente na piada que fiz, enquanto almoçava com colegas de trabalho do meu estágio, para tentar explicar a razão por tatuar o gatinho de estimação de Kiki, chamado Jiji: além de também ter um gato, eu também saí do interior para ter depressão na capital. A tatuagem de algo que me recorde de um momento ruim, onde tive que lidar com as piores sensações e memórias que a mente pode proporcionar, talvez não faça sentido para alguns leitores. Mas, acontece que, assim como outras obras do famoso Studio Ghibli, Kiki é a definição do filme de conforto. A “marca d’água” Ghibli vem da sutileza estética visual com que se retrata uma fase de confusão que permeia as decisões e possíveis desfechos, assim como a vida comum. Isso torna os filmes do estúdio a opção “mais sã” quando o objetivo é assistir algo que te faça se sentir positivo, ou nostálgico — mesmo que não exista pelo que sentir falta. O momento para lembrar ou desejar uma vida que, no final, vale a pena ser vivida.
Kiki não é especial. Ela não tem poderes para além de ser uma pequena bruxinha, mas até mesmo esse fator não é representado como um grande dilema. A obra não soluciona esse “mistério” entregando-nos ao final uma versão evoluída da personagem, um glow up, ao contrário de filmes como Diabo Veste Prada, a cota de feminismo liberal entre meus filmes prediletos.
A grande virada para o personagem é voltar a ver sentido no que faz cotidianamente, em apenas viver, não o que deveria fazer.
Entre os personagens e acasos que cruzam o caminho de Kiki, auxiliando-a em sua jornada de heroína, está Ursula, uma jovem artista que é a representação em carne e osso da piada: “vontade de abandonar tudo e viver da minha arte”. Ela amassa e joga fora o papel que documenta a premissa capitalista produtiva que você “faz apenas o que quer, e escolhe como usar seu tempo” e se está falhando em alcançar metas comuns, é por que prioriza as coisas erradas — e mostra como vive uma pessoa quase que completamente alheia à programação comum.
No momento em que Kiki passa um final de semana adoecida em um casebre situado no meio de uma floresta, Úrsula relata sobre o período em que viveu algo semelhante que Kiki. A solução para seu problema era se libertar do hábito de copiar outros, fazer conforme seu tempo e desejos.
A forma Ghibli de fabricar um final feliz me veio à cabeça imediatamente ao ler Anseios, de bell hooks. No livro, a filósofa tenta traduzir o luto de ver a vida comunidade negra ser infiltrada por ideologias da branquitude por volta dos anos 1970 – o que resultaria num ‘capitalismo negro’. Para ilustrar o sentimento, hooks relata a história de um casal negro que, ao se tornar obcecado para subir de vida nos padrões brancos, abandona tudo sobre si mesmos, como história, valores pessoais como comunidade e outras formas de se pensar sobre a vida. Em retrospecto, a esposa, já mais velha, considera que se comportaram “como se nada neles fosse digno de louvor”.
“Não podíamos ter agido de outro modo? Será que não havia outro caminho?! […] Seria possível fazer as duas coisas? Ou seja, batalhar – como fizeram durante tantos anos -para conseguir os meios para sair da rua Halsey e ver os filhos bem formados, mas sem deixar de preservar, proteger e amar as coisas que haviam sido passadas para eles de geração em geração, que os definiram em suas particularidades. A parte mais vívida e valiosa de sua existência.”
Praisesong for the widow, Paule Marshall
As sagazes escolas de Kiki e Úrsula para criarem sentido em suas vidas, no entanto, apenas não possíveis em um contexto específico, se consideramos o filme como uma retratação de parcelas de sentimentos reais e lembrarmos um dos preceitos existencialistas. Em um universo que preza pelo silêncio necessário, longe da realidade que tilinta muito alto e invade nossas vidas por meio de aplicativos de organização e tarefas, onde os resultados das escolhas são tantos e imprevisíveis, a forma Ghibli de valorizar uma vida perfeitamente banal de forma não entediante parece possível. Mas e o mundo fora do estúdio, é daqui para pior? É melhor, e mais maduro, aceitar que a vida sempre será uma ladeira abaixo para uma avenida de vielas sem saída?
2B
A história por trás de Nier Automata, videogame lançado em 2017, habita uma guerra entre máquinas criadas por alienígenas que invadiram a Terra muito antes – algo parecido com o filme Matrix – com androides projetados pelo restante da humanidade, que está refugiada na Lua.
Durante o jogo, as primeiras missões em que os personagens 2B e 9S são enviados tem como objetivo eliminar ameaças das máquinas inimigas à Resistência Local. É aí que o jogador descobre que ao lado dos andróides, uma parte das máquinas inimigas estão abandonando seus postos na guerra e participando de uma resistência, lutando por regras, noções e valores que um dia guiaram a humanidade. Em uma certa medida, parece que naquele momento, as máquinas passam a entender o que é a tal angústia existencial que os humanos tanto falam.
“Tudo que vive é projetado para acabar. Estamos perpetuamente presos em um espiral interminável de vida e morte. Isso é uma maldição? Ou um tipo de punição? Eu frequentemente penso a respeito do deus que nos abençoou com esse enigma críptico e me pergunto se algum dia teremos a chance de matá-lo”
Monólogo de 2B no início do jogo
Em Nier, os robôs estendem seu conhecimento sobre os humanos lendo arquivos historiográficos e arqueológicos sobre o período que eles dominaram a Terra. Os personagens — que desde os anos 1980 são frequentemente usados para cutucar dúvidas sobre o que torna algo humano e o que faz com que IAs e máquinas sejam coisas — leem também sociologia e filosofia. Todos esses elementos são incorporados no código projetado inicialmente para entender a humanidade, e não é raro que no jogo, alguns personagens tenham nome de filósofos existencialistas.
O resultado são robôs que tentam emular humanos, não por uma noção metafísica do que seria a humanidade, mas uma cópia das decisões e ações tomadas por pessoas ao longo da história. O fracasso dos robôs foi trilhar – de forma mais consciente quanto uma máquina pode estar – um caminho destinado ao fracasso. Por isso, será que o que Yoko Taro, idealizador do jogo, não quis dizer que o destino humano seria a própria ruína?
Não podemos fazer afirmações. Afinal, a humanidade nem acabou ainda. Mas creio que não. Para um videogame que se esforça para questionar coisas como vida e a importância da escolha em determinar propósito a ela, acredito que não seja isso que Taro quis dizer ao apontar para seres com escolhas condicionadas a um roteiro prévio e uma série de comandos.
Amor fati
Dissertando sobre metas de Ano Novo, Nietzsche fala em um dos seus livros sobre o amor fati, ou amor ao destino, que alcançaria ao “aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas”. Não me arriscaria a cometer o crime hediondo de afirmar o que um filósofo quis ou não dizer, mas me parece possível interpretar esse “destino” como a inevitabilidade de viver, uma vez que você está vivo e tem que fazer alguma coisa, com qualquer que seja essa coisa que você escolha. Se existe, agora, algum destino, no sentido de inevitabilidade de estar vivo, que venha puro, sem necessidades e ideias que outros fabricaram para dar sentido ao mundo – como as que levaram os robôs à falência e nós continuamos a pagar parcelas com juros para descobrir como seria viver nesse mundo.
As máquinas de Nier seguiram um caminho já trilhado, apesar de suas falhas evidentes, chegando ao mesmo final catastrófico. Isso não serve para outra coisa, senão para atentar a necessidade de resistir às ideias que mantêm num ciclo de repetição. Em períodos diferentes, o discurso formado pelo conjunto de ideias tornou destino uma realidade que um dia foi escolhida, cegando aqueles que, vendo-se presos a um cotidiano imposto, não viram alternativas e deixam suas vontades serem levadas.
“Em meados de abril de 2011, a mídia revelou que o governo chinês havia proibido a exibição, em cinemas e na TV, de filmes que falassem de viagens no tempo e histórias paralelas, argumentando que elas trazem frivolidade para questões históricas sérias – até mesmo a fuga fictícia para uma realidade alternativa é considerada perigosa demais. Nós, do mundo Ocidental liberal, não precisamos de uma proibição tão explícita: a ideologia exerce poder material suficiente para evitar que narrativas históricas alternativas sejam interpretadas com o mínimo de seriedade. Para nós é fácil imaginar o fim do mundo — vide os inúmeros filmes apocalípticos —, mas não o fim do capitalismo.”
Slavoj Žižek
No mesmo livro citado anteriormente, hooks menciona o monge budista Thich Nhat Hanh para definir ‘resistência’ a partir da noção que ela “então, talvez signifique se opor a ser invadido, ocupado, agredido, destruído pelo sistema. O propósito da resistência, aqui, é buscar a cura de si para poder enxergar claramente”.
Mas buscar essa cura parece e de fato é difícil, uma vez que todas as escolhas nesse sentido têm ar de impossibilidade, de inviabilidade. Ainda assim, a parte mais difícil da visão turva para a vida é acreditar que não existe outra forma de viver senão sem poder enxergar. Assim, podemos apertar os olhos e tentar ver que ainda existem outras formas de viver, como Úrsula sugere. É possível desistir da ideia de travar uma guerra diária com aqueles não envolvidos em nossas batalhas, como as máquinas e os androides. E, simultaneamente, não podemos pensar que é possível organizar o calendário de outras formas -— ou que dá para obliterá-lo da existência, como Gramsci deseja.
Apesar da dificuldade, ao menos pensar em todas essas coisas talvez nos empurre para a ação e trilhar outro caminho, como se houvesse algo em nós e a vontade de viver para além do destino, que permanece inerte e enclausurada, fosse digna de louvor.