Este texto foi escrito em novembro de 2022, por Luiza Berthoud.
i. Um poema ruim
Em 1680 numa cidade colonial de Massachusetts, Mary Webster, uma senhora de aproximadamente 60 anos (não se sabe sua data de nascimento precisa), foi acusada de bruxaria e enforcada em uma árvore por seus contemporâneos, alguns vizinhos e até amigos, muitos dos quais ela havia medicado e parido com seus talentos de cuidadora e parteira. Ela pernoitou pendurada pelo pescoço mas o linchamento não funcionou: há registros de que Mary viveu por quatorze anos subsequentes.
A renomada escritora Canadense Margaret Atwood crê-se descendente de Webster, e a dedicou seu romance mais famoso, O Conto da Aia, e também um poema narrativo, “Half Hanged Mary” (Mary Meio-Enforcada). Bons romancistas fazem maus poetas, mas o poema é… esperto. “Rumor was loose in the air/ hunting for some neck to land/ on, (o boato estava solto no ar/ caçando algum pescoço para pousar), ele começa, e segue narrando em intervalos de hora a noite de Webster, seu corpo suspenso em agonia à espera do fim.
Sua morte anuncia-se primeiramente na forma de um corvo à espera de uns olhos para comer, depois de um juiz que profere sentença falando que mulheres são putas, e depois da multidão odiosa com “seu próprio mal virado do avesso como uma luva/ e eu o usando”. Finalmente a morte é como um anjo sombrio que sussurra sugestivamente à Mary “para desistir de minhas próprias palavras por mim mesma,/ minhas próprias recusas./ Para desistir de saber”. É fútil, diz o anjo, refutar e muito menos entender; à acusada, cabe apenas se entregar ao destino que a multidão escolheu.
Mas às 3 da manhã Mary permanece viva. E enfurecida:
…eu chamo
você como testemunha eu cometi
nenhum crime eu nasci eu suportei eu
suporto eu vou nascer isso é
um crime que eu não vou
reconhecer
Ela sobreviveu por causa de sua fúria. A injustiça, ainda mais contra pescoço próprio, nos dá esse presente: raiva, zanga, cólera.
ii. Bilhões de ágoras
Recebo o tema para este ensaio, que é “Fui banido(a) das redes: perdi minha liberdade de expressão?”, para que responda como quiser.
Como já mostrei em colunas anteriores no Sabiá, tenho um histórico de me posicionar a favor da liberdade de expressão – certamente da minha liberdade de proferir opiniões contrárias, mas também na defesa do que discordo; afinal, o único jeito de defender a liberdade de expressão é apoiar que seus opositores a tenham. Eu já apoiei negacionista, critiquei o impulso censório de Chico Buarque, defendi a estátua bizarra do Touro de Ouro da B3, e, o mais tabu, ousei dar liberdade de fala à mulher que defende direitos das mulheres.
O ponto de interrogação ao fim do tema me enfurece. Enfurece porque a pergunta é levantada como se fosse razoável.
Me penduraram pelo pescoço numa árvore: estou sendo enforcado?
Lógico que o banimento de redes é uma enorme violação à liberdade de expressão. Mas é só online, você vai continuar vivendo. Sim, quantos dias você passa sem interagir em alguma rede social? Nem dias, quando foi a última vez que você foi da porta da sua casa até o seu carro sem estar plugado no seu celular? Quantas opiniões políticas você profere sem antes conferir a atmosfera da opinião pública no Twitter. Aliás, quantas opiniões políticas você profere fora das redes? Em que pé anda a sua vida social sem intermediação das redes? Com quantas pessoas você conversa ao vivo, quantas você toca com as mãos, como você vai de A a B, como você sabe das notícias, como você faz transações bancárias, como você, como você…
Alguns teóricos da internet que admiro, como Justin E. H. Smith, afirmam que postar opinião política online é participar de uma simulação, um vídeo game de política e não a coisa real. Me atraio pela ideia mas reconheço que é irrelevante quando nossa vida toda está entrelaçada com o virtual. Simulacro ou não, o banimento online exerce a exata mesma função do que o ostracismo forçado do exílio e precisamos debatê-lo como a ferramenta política que é.
A praça pública, no singular, não existe mais; agora existem bilhões. A ágora multiplicou-se pela divisão: cada um de nós tem uma ágora individual, a tal curadoria de conteúdo de entretenimento e jornalístico que nos substituiu notícias e fatos em comum.
Trocamos o real, necessariamente comunal, onde é preciso negociar com vontades e opiniões plurais e conflituosas, pelo virtual, onde o indivíduo constrói a própria realidade com conteúdos que caem bem à sua sensibilidade cultural. E onde todos sim, todos consomem fake news e reforçam seus viés via manipulação algorítmica ou bloqueando, silenciando ou mesmo reportando o que não se gosta.
Perfis individuais, curados e filtrados a bel-prazer, nós avatares de nós mesmos, nossas mentes decapitadas dos nossos corpos, do físico, da natureza, do verdadeiro: online, têm-se experiências, mas elas não são corporais, não requerem o uso de todos nossos sentidos, não inspiram, por fim, o senso comum, que afinal é o conhecimento que nasce da soma de todos os cinco sentidos.
Não quer?
Para destravar o mundo real, favor clicar no e-mail de confirmação…
Já sabíamos que as plataformas de redes sociais rodavam com algoritmos gamificados; agora, temos provas de que elas são controladas por bilionários em parcerias com o setor de segurança de grandes governos que aproveitam a chance para policiar qualquer pensamento que lhes incomodem.
Não há porque instaurar uma ditadura quando nosso regime virtual já é um estado policial com carapuça de democracia: sem acusação ou direito de defesa, o PayPal pode da noite para o dia fechar a conta do seu negócio; o governo Canadense bloqueou acesso às contas bancárias de participantes de protestos pacíficos; o aparato de segurança dos Estados Unidos mentiu e provocou a censura de uma história de suposta corrupção por parte da família Biden logo antes das eleições, o Youtube exclui vídeos jornalísticos sobre os protestos de 2020 nos EUA e até de testemunho médico no Senado Americano.
Se nos roubam hoje a liberdade de expressão, amanhã serão todas as outras. O futuro é um regime de crédito social com regras ditadas não pela lei ou vontade popular mas por grandes monopólios tecnológicos que fecham parcerias com o Estado para não verem seus domínios comerciais quebrados.
Só os bem comportados terão o direito de participar da vida social.
iii. O banimento online é um linchamento
Quando os executores vêm buscar o corpo de Mary Webster, encontram-na viva.
Antes, eu não era uma bruxa.
Mas agora eu sou.
Claro. Porque banimento online é um linchamento onde o condenado não morre. As ideias suprimidas não desaparecem: elas só vão para buracos escuros longe da luz da discussão pública. Não há persuasão, não há testagem e polimento de argumentos ou formação de coalizão política.
Até porque tudo isso faz parte do fazer político. O zeitgeist atual é pós-modernista: defende menos o fazer e mais o parecer, ou seja, defende que a realidade ontológica (do mundo físico) seja substituída pela epistêmica (das palavras).
É por isso que as guerras hoje são discursivas: sobre o que se pode falar e o que se pode ouvir. Ideias contrárias não são mais diferenças ou oposição: agora são denominadas ameaça, perigo, fascismo, violência. Palavras são vírus contaminantes.
Além de podar o debate, o propósito destas guerras é sorrateiro: ao simplesmente mudar a definição de palavras, por exemplo, a definição de “mulher”, pode-se alterar o espírito de uma lei sem precisar legislar. Em outras palavras, novas leis e limites à expressão estão sendo determinados fora do processo democrático.
Vejo uma ideia errada difundida comumente hoje, de que somente pessoas ruins precisam invocar liberdade de expressão. Tal dicotomia entre tolerância e liberdade é completamente falsa: a história mostra como esses valores são mutuamente reforçados e é exatamente nos regimes onde não há liberdade de expressão que a opressão tende a ser mais nociva e genocida. E também, qual progresso moral que um dia já não foi tido como ofensivo, abominável até? Sufrágio universal, abolição da escravidão, os direitos LGB. Só obtivemos esses avanços morais porque discordou-se do status quo, discordou-se do que era tido como errado; comportou-se, enfim, mal.
O objetivo do banimento e da censura não é expelir idéias odiosas e nem ilegais; é afugentar ideias divergentes. O animus é o mesmo de todo regime autoritário: desdenhar da sabedoria popular, frear o debate público, expurgar opiniões dissidentes. Mas lembre-se da raiva da nossa Mary meio-enforcada:
Tendo sido enforcada por algo que
Eu nunca disse,
Agora posso dizer tudo o que posso dizer.
Se você não se preocupa com esse cenário, é porque você é conformista. Mas permita-me uma profecia: você um dia também vai ter uma Opinião Errada. Uma nova Opinião Certa será Decretada e eventualmente você discordará. Você sentirá fúria. Você talvez já esconda um pensamento assim na garganta: a aposta do regime técnico-burocrático é que você está condicionado a morder a língua.
iv. Um Guia Para Refutar Os Argumentos Mais Bitolados
A liberdade de expressão como valor absolutista é fascista (ou nazista ou insira-qualquer-outra-hipérbole-histérica): primeiro que quase ninguém é absolutista quando defende a liberdade de expressão. Eu vejo uma voz pública que define-se como absolutista hoje, o jornalista Glenn Greenwald, e admiro sua coragem. Mas nem o bicho papão da vez, Elon Musk, é absolutista: pelo contrário, o novo dono do Twitter já deixou claro que acredita em liberdade de expressão só até onde definida – e cerceada – pela lei.
O regime de lei Brasileiro também já impõe enormes limites legais ao que pode ou não ser dito. Todo Estado de Direito impõe centenas de limites à expressão: apologia à violência, ameaças, estelionato, falas discriminatórias, etc etc, são codificados como ilegais.
O que está em debate, contudo, é a liberdade para expressar opiniões políticas. Acredito que avanços políticos só acontecem via debate contencioso. Os detratores da liberdade querem ainda mais limites e mais censura. Ao invés de convencer eles preferem coagir. É um método velho e tirânico.
Blá blá blá pandemia, blá blá blá fake news: se há uma coisa que essa pandemia reforçou foi a desconfiança com qualquer tipo de “instituição” que clame censurar, controlar, impedir “em nome da ciência”. Só um exemplo de centenas, talvez milhares: o caso do Dr. Jay Bhattacharya, professor doutor da Faculdade de Medicina de Stanford, especialista em doenças infecciosas. Você imaginaria que a dele seria uma contribuição legitima sobre a pandemia COVID-19, ele com a expertise suficiente para acalmar o coração de um fanático “apoiador da ciência” mais devoto que camponês ao sacerdócio na Idade Média.
Quando o aclamado doutor se posicionou contra o fechamento de escolas, o Twitter o colocou em uma lista negra secreta que preveniu que seus tweets entrassem nos trending topics, ou assuntos do momento. Ou seja, uma plataforma digital decidiu unilateralmente minar um debate absolutamente justo, científico e democrático.
O saldo final? Os fechamentos escolares rígidos aumentaram severamente a perda de aprendizado, com alunos de baixa renda sofrendo as maiores perdas em leitura e matemática, sem contar o aumento da evasão escolar. Ou como contabilizou essa matéria da Folha, estima-se que “perdas de aprendizado podem se traduzir em renda 9% menor ao longo da vida e ampliar desigualdades.” Mas nos censuram para o nosso bem!
As redes são de propriedade privada, os bilionários que nos regem tem o direito de fazer o que quiserem: a parte mais importante desta sentença é que eles nos regem, certo? Pelo tamanho e poderio que exercem, as plataformas sociais deveriam deixar de ser privadas e ser tratadas mais como de utilidade pública. Sei que a democracia agora é démodé, mas o que opositores da liberdade de expressão defendem como alternativa é uma teocracia cibernética.
Os Twitter Files mostraram o polegar na balança do banimento: as regras de moderação não são claras, públicas, aplicadas igualmente e muito menos justas. São moderação sem representação. As revelações provam o que já suspeitava-se mas era até então negado sob juramento pelo Twitter: que o aparatus de segurança Norte Americano frequentemente opina junto a redes sociais o que pode ou não ser publicado; que contas são arbitrariamente suspensas ou tem engajamento artificialmente limitado; que tudo é feito sem regras e sem notificação ao usuário; que existe um viés contra conservadores e contas satíricas; e, o mais revelador, que o que bane-se não são idéias criminosas mas sim dissidentes.
Exercer poder sobre outras pessoas é sempre um ato político. Em um regime democrático prevê-se que a vontade popular dite os poderes políticos e legislativos. Mas acharam uma maneira de roubar-nos esse direito: uma parceria às escuras com os donos da praça para manipular o debate. Um gato de luz na nossa liberdade de discutir a experiência humana.
Liberdade de expressão não te dá o direito ser ofensivo: ofender pode ser errado moralmente, em alguns casos. Mas estamos falando de direito e direito é uma liberdade. Sabe o que já foi tido como ofensivo pela maioria da população? Falar que a Terra gira em torno do Sol, o casamento gay, a nona sinfonia de Beethoven, Sócrates, Oscar Wilde, até Capitu… a lista é infinita. E o contrário também é verdade, há centenas de ideias abomináveis que não foram denominadas ofensivas por séculos: sexismo, racismo, escravidão. O sentimento de ofensa é inevitável, geralmente não é dos nossos melhores impulsos e certamente não é sólido o suficiente para minar-nos a liberdade.
iv. Eu, Robô
Em uma reunião como esta
o lugar seguro é o fundo,
fingindo que não se sabe dançar,
a postura segura é apontando o dedo.
A maior ameaça à liberdade hoje não é legal ou política: é social. Por isso o banimento é uma ferramenta fundamental: ele dá o recado de que você não é desejado. Isso é exílio com outro nome.
Nós costumávamos adular as pessoas interessantes – ou pelo menos tolerá-las. Os bobos da corte, os excêntricos, os artistas. Eles ensinavam-nos a irreverência frente ao que tratamos com reverência. Eles tinham algo a dizer e era algo que ninguém mais podia articular.
Não mais. As ruas estão tomadas pela multidão ensandecida de vigilantes e aqui é mais seguro ser a irmã mais nova apontando o dedo do que a mais velha arrastada para a fogueira. As armas de combate são sociais: isolar, disciplinar e defenestrar. E você, segue as ordens da infantaria patética e faz seus comentários puritanos, encaminha no WhatsApp, marca patrocinadores, redige e-mail dedo duro para o RH; e crê que participou de uma campanha virtuosa contra um inimigo abominável. Mas o que você fez foi só cair no impulso de sobrevivência de se juntar à multidão justiceira de caça as bruxas, de queimar para não ser queimado, de talvez usar a ferramenta de ostracismo social cinicamente também, para sua vantagem, para compensar a sua impotência em fazer algo real com a sua vida.
O matemático Pascal já cantou o fenômeno no século XVII: “Não nos contentamos com a vida que temos em nós e no nosso próprio ser; desejamos viver uma vida imaginária na mente dos outros e, para esse propósito, nos esforçamos para brilhar. Trabalhamos incessantemente para adornar e preservar essa existência imaginária e negligenciar o real… E se possuímos calma, ou generosidade, ou veracidade, estamos ansiosos para anunciar, de modo a anexar essas virtudes a essa existência imaginária. Preferimos separá-las [as virtudes] de nós mesmos para nos juntarmos à existência imaginária; e, de boa vontade, seríamos covardes para adquirir a reputação de corajosos.”
Preferimos ser covardes se nos vai dar a fama de corajosos. É o duplipensar de Orwell: o banimento é feito pela tolerância; a censura pela defesa da democracia; os vigilantes são pela virtude; a repressão pelo bem comum; o abuso da lei em defesa do Estado de Direito.
v. Eu, Escritora
Um escritor tem uma obrigação, somente uma: e não, não é representatividade, ou inspiração, ou elevação moral, ou comentário político, ou instrução educacional. É tentar falar a verdade.
Então, é preciso escrever a verdade desconfortável, pelo menos para mim, uma pessoa filiada à esquerda brasileira: defender a liberdade de expressão online cada vez mais significa defendê-la contra os ataques da esquerda e da rede de burocratas e apoiadores ingênuos esquerdistas que agem como comissários culturais e representantes da moral e bons costumes. A enorme tragédia foi convencer-nos a participar de nossa própria subjugação: fizeram-nos Winstons amando o nosso Big Brother.
O banimento reorienta a trajetória do debate e não deixa que flua o processo natural contencioso onde as melhores ideias sobem ao topo. Quando contribuições legítimas são silenciadas, todos os exilados recebem uma aura mística que os torna ainda mais atraentes. Um clima de auto-censura é instalado. O sentimento de fúria é impulsionado. A desconfiança reina.
Essa atmosfera vingativa existe para determo-nos de pensar. O banimento da rede social faz exatamente isso: para-nos o debate, por violações que nunca são esclarecidas e às quais não podemos apelar significativamente, aplicadas por burocratas que no fim seguem somente uma regra: o que eles querem, vale. Não podemos delegar tamanha autoridade a comissários do discurso cultural com seus interesses próprios e dever fiduciário para com acionistas.
Acredito que precisamos de proteções melhores na internet contra vários comportamentos ilegais. No entanto, não acho que o caminho é fortalecer ainda mais os censores de discurso online e muito menos unirmos-nos aos vigilantes que denunciam qualquer infração dos nossos contemporâneos. Acho que é preciso mudar e regular a infraestrutura da Internet por caminhos políticos e legais, e principalmente mudar nosso comportamento nas redes. Até lá, eu imploro, parem com o comportamento vergonhoso de torcerem pela opressão. O Winston pelo menos tentou lutar contra o Big Brother, antes de ser quebrado.
Para qualquer pessoa descente, avistar um linchamento deveria ser sempre intolerável, quer se queime uma bruxa ou não.